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Não seja tolo, Eldric. Ninguém pode controlar um demônio que nem os Deuses conseguem.
A assertiva ecoava em sua mente.
O odor das ervas e do sangue enfurecia-lhe os olhos.
O mármore negro do chão congelava sua orelha.
Mesmo assim, ele não conseguia se mover.
Tenho de fugir daqui, tenho de fugir daqui!
Eldric sabia que precisava escapar o mais depressa, não apenas por sua própria vida, mas pelo segredo que carregava. Um segredo que mudaria tudo, e o fazia se recusar a ceder ao medo.
Mesmo com uma dor cruciante na cabeça, esforçou-se para respirar fundo.
No entanto, o ar gélido, que devia encher os pulmões, desaparecia logo que se aprofundava pela garganta.
Deuses, isso não pode estar acontecendo, não pode estar acontecendo!
Revirando os olhos, achou estilhaços de lâminas, espadas e outro mago caído no chão. Deitado sobre uma poça de sangue que não parava de crescer, o mago de veste escura tinha o braço retorcido para trás, com as pernas dobradas como fossem galhos quebrados, em uma posição de afligir a alma.
– Elmon…? Elmon…?
Uma voz cavernosa ecoou.
– Não.
Só então Eldric percebeu um vulto ao lado. Em desespero, tentou decifrar a enorme imagem obscura. A luz mortiça do salão não penetrava no capuz do outro homem, mas Eldric reconhecia aquele olhar espectral cravado em si. Havia algo familiar nele, uma lembrança de um pacto demoníaco, forjado pelas sombras.
– MAVARO… – rugiu o demônio, ao aterrissar o pé sobre a cabeça de Eldric. – Quem mais procura encontrá-lo? Lúciann?
Servo de fidelidade duvidosa, Lúciann fora o único em quem Eldric confiou para levar o seu brilhante plano adiante. Não que verdadeiramente Eldric tivesse achado aquele imbecil um homem com virtudes valiosas ou, ao menos, capaz de tomar decisões sensatas em momentos difíceis como o seu. Lúciann tinha demonstrado certo valor ao arriscar a própria vida para que Eldric ascendesse ao poderoso trono de Profecia. E, embora devesse, Eldric não conseguiu ignorar o feito e deu com a língua nos dentes justo quando não podia. A guerra contra os Deuses é iminente, Lúciann. Caminhamos para uma nova Era. Precisamos nos preparar, antes que seja tarde demais.
– Se é Lúciann que deseja, ajude a me levantar então – propôs Eldric.
Entretanto, após um instante de total silêncio, a pressão sobre sua cabeça se intensificou, com o demônio esmagando-a com o pé. Eldric comprimiu os olhos, segurando a custo um grunhido entre os dentes. Para piorar, em meio àquela escuridão de dor, Eldric detectou a presença de algo ainda mais perverso, uma força sobrenatural movimentando-se ao redor.
O pânico já o dominava quando o maldito demônio enfim afastou o pé.
Eldric respirou, meio temeroso, meio aliviado, esperando um instante para reabrir os olhos. Afinal, era um mago, um dos mais poderosos de sua Ordem ou não era? Não podia permitir que aquela criatura o visse como um fraco. Tão logo abriu os olhos, o demônio se abaixou.
Isso, criatura maldita, me erga, me erga!
Porém, em vez de erguê-lo, o demônio ficou imóvel, num silêncio cada vez mais aterrorizante.
– O que você quer de mim, demônio?
Novamente o demônio permaneceu quieto, agora exalando o ar com um sopro forte e fedorento que fazia o rosto de Eldric arder. Então, sem aviso, ele agarrou-lhe o cabelo com força e os torceu, puxando-os para cima.
O mundo então correu para baixo, a dor espalhando-se pela cabeça de Eldric como fosse um raio partindo seu crânio. Ao parar de se mover, sua visão escureceu, com tudo ao redor perdendo nitidez. Ainda assim, Eldric conseguiu notar que pairava muito acima do chão.
– Eu descobri tudo sobre vocês. TUDO! Não adianta mais me tentarem. Eu não vou falar.
– Olhe – ordenou o demônio ao chacoalhar Eldric.
Eldric rangeu de raiva e então tentou se debater, mas nenhum membro do corpo parecia entender o seu desespero. Que diabos estava acontecendo?
– OLHE!
Após outra sacudida, Eldric baixou os olhos.
Movendo-os de um lado para outro, esforçou-se para vasculhar o imenso salão. Uma terrível sensação cada vez mais o invadia. A bem da verdade, sensações como aquela sempre foram suas aliadas. Afinal de contas, desde os primórdios da existência humana que aquele salão fora consagrado às práticas sobrenaturais, e Eldric adorava os horrores que ocorriam ali, e adorava também cada estátua, cada escultura maligna que adornava o suntuoso ambiente. Ali, abrigava-se o gigantesco altar, com dezenas de assentos margeando o grande círculo negro, onde os iniciados na jornada de poder realizavam o ritual. Iluminado pelo fogo das tochas que nunca se apagavam, era um lugar que emanava muito mais do que medo e poder. Ali, preservavam-se segredos que nem as personalidades mais poderosas do mundo podiam desconfiar.
Nessa noite, porém, nada era como antes.
Daquele cenário turvo de destroços, Eldric só conseguia distinguir vultos de corpos e um fedor insuportável de sangue e ervas queimadas. Com Profecia enfim em suas mãos, tudo havia mudado, nada daquilo era necessário. O segredo mais mortal do mundo antigo não podia vir à tona justo no dia em que fora nomeado Grão-Mestre. Afinal, que diabos seria daquele mundo sem Eldric?
Foi então que, em meio à multidão de imagens turvas, uma estremeceu sua alma.
Não pode ser, não pode ser!
Por um instante de puro terror, Eldric se deteve naquela imagem assustadora. E, enquanto lutava contra o pânico, piscou os olhos com força, várias vezes, na esperança que sua visão se tornasse nítida novamente.
– Esse… é o meu corpo?
Em resposta, o demônio riu. E, dessa vez, o sopro em sua voz era frio como gelo.
– O punhal, velho miserável, onde ESTÁ?
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Dias depois, Soberannia se preparava para a Grande Festa de Paz.
De cinco em cinco anos, guerreiros vindos de toda parte se reuniam em vilarejos próximos às fronteiras de Soberannia com Resplendorr, para celebrar o período de paz que repousava sobre os países membros do Império. Ao longo de dias, acanhados vilarejos viam suas ruas se estreitarem, ganhando vida e uma infinidade de cores, com a presença de autoridades e lordes de todo o mundo. Centenas e mais centenas de pessoas vestiam-se com os seus melhores trajes e perambulavam em longos desfiles, exibindo acessórios e paramentos de guerra, indo e vindo de um canto a outro. Cavaleiros montavam em exuberantes animais e desafiavam-se em torneios para descobrir quem era o mais forte ou talvez o mais esperto entre todos. Damas, em belíssimos vestidos, acenavam à multidão e enchiam torcidas para os pretendentes.
Era uma grande festividade, não havia que se discutir.
E, naquele ano, por determinação do Governador Dáriuss, essa grande celebração ocorreria na Fortaleza Montanhosa. E, em vez de trinta dias como de costume, o Governador tinha decretado que seriam cem dias de festas e torneios.
Só que o clima não era festivo, e a recente decisão de estender as comemorações intrigava Rod. Tremores aconteciam quase todos os dias naquela cidade, e enormes rachaduras já eram visíveis nos prédios. Rumores de uma guerra contra forças sobrenaturais já se propagavam pelas ruas quando um sol de sombras repentinamente ergueu-se no céu. O medo transpirava através das muralhas, e dia a dia era mais nítido no semblante de cada um com quem ele cruzava. Ainda assim, a fim de tirar proveito da grande celebração, o país inteiro tentava ignorar essa atmosfera de terror, enquanto Rod cavalgava a toda velocidade pelas ladeiras íngremes da Fortaleza Montanhosa.
Ao alcançar uma região mais deserta, Rod parou.
As ruas estreitas e sinuosas estavam vazias ali, e até as casas pareciam mais cinzentas e abandonadas. O silêncio era quebrado apenas pelo som ocasional de pedras soltas sob os cascos de seu cavalo. O ar permanecia tenso e pesado, como se a cidade inteira estivesse se preparando para o pior.
Depois de arrumar a capa e a luneta presa ao cinto, Rod sondou o brilho indicativo no alto da Torre dos Ecos. Um pouco mais depressa, e assumo meu posto sem que ninguém perceba nada.
Retomando a cavalgada, Rod dobrou a esquina, mas uma donzela o fez reduzir bruscamente. Ao lado da entrada de um beco, a mulher de vestido verde brindou sua passagem com uma olhadela desconfiada e então se desviou. Mais uma vez, Rod se indagou se o que fazia era o certo.
O que meu pai irá pensar dessa vez?
Alto, pele morena, ombros largos e traços que, apesar de suaves, conferiam-lhe ar de autoridade; ainda assim Rodden, que preferia ser chamado de Rod, não conseguia mais apreciar sua condição de membro da temida Guarda Imperial. Até pouco tempo atrás, preferia as cavalgadas velozes, com o punho comprido da espada sempre à mostra, enquanto ostentava sua capa vermelha e branca para que todos a vissem. Pois, embora essas cores hoje pesassem como um fardo no coração, elas sempre o diferenciaram entre os guardas e cavaleiros de Soberannia.
E se eu a trouxer de volta? Será que ele terá orgulho de mim outra vez?
A perda da mãe, por outro lado, doía cada vez mais, com todo o mistério ao redor enfim se revelando. Era o seu último ano naquela cidade. Em breve, Rod iria mudar de nome e abandonar as cores do Império para assumir o verde-mar e dourado de Soberannia, do comando do temido Forte Norte, muito embora já não soubesse se deveria desejar o futuro para o qual fora criado.
Se me desapontar novamente, havia-lhe advertido o pai, juro que lhe removerei o direito de comandar o Norte deste país.
Quando voltou a acelerar, dois estranhos saltaram à sua frente.
Rod deu um puxão nas rédeas, esbravejando comandos para a montaria, mas, mesmo assim o cavalo saltou de um lado para outro e empinou uma, duas vezes.
Rod agarrou-se às rédeas, porém não demorou muito a escorregar.
Suas costelas então bateram contra o chão, o corpo inteiro retesando-se ante o violento impacto. Rod gritou e, mesmo com os músculos se contraindo, fez uma rápida tentativa para se levantar, sem que encontrasse força suficiente nas pernas. Rolando no chão, levou a mão às pressas sobre a luneta e ergueu os olhos.
Duas caras enormes o olhavam de volta.
– Esse é o tal ladrãozinho? – indagou o homem mais alto.
– Ele mesmo – respondeu secamente o magricela.
Nenhum dos dois tinham vestes elegantes, senão um familiar sotaque azedo na voz. Como esses dois conseguiram me achar?
– Como vocês chegaram aqui?
– Pensou que o papaizinho ia protegê-lo pelo resto da vida, filho? – O magricela deu uma risadinha, olhando para o grandalhão com um olhar de desdém. Apesar de sua aparência mais frágil, ele tomou a iniciativa, agarrando um dos braços de Rod enquanto o grandalhão, meio hesitante, segurou o outro. Então os dois ergueram-no do chão como se Rod fosse um boneco de pano. – Vai se arrepender pelo que fez, filho. Oh, se vai. – E começaram a arrastá-lo na direção do beco onde há pouco tinha avistado a donzela.
Na esperança de alcançar a espada, Rod se contorceu.
Uma coisa pontuda espetou suas costas.
– Cuidado pra não piorar as coisas, filho – advertiu o magricela.
Ao chegarem à entrada do beco, depararam-se com um rosnado.
O magricela olhou para o grandalhão, o rosto agora pálido. Havia uma cumplicidade na forma como eles se olhavam, uma ligação que ia além de uma simples parceria. Talvez fossem irmãos, isso era o que parecia, mas havia uma tensão tênue entre eles, uma dinâmica de poder que pendia para o lado do magricela.
– Ouviu isso? – O magricela perguntou com nítido temor.
– Parece que temos companhia – foi a resposta do grandalhão.
Rod varreu a escuridão com os olhos. Seus sentidos oscilavam, ainda assim ele podia sentir uma presença. Diante da hesitação dos dois homens, reuniu coragem e afundou o calcanhar no pé do grandalhão.
O homem praguejou, e Rod se desvencilhou dele e atirou um punho fechado em direção ao nariz do magricela. O outro homem recuou, e Rod perdeu o equilíbrio, e em seguida o grandalhão avançou em seu pescoço, lançando-o com força contra uma parede. Sua cabeça então ricocheteou na pedra, e ouviu-se uma rajada enfurecida de latidos. Embora atordoado, Rod se debateu, até que o magricela também o agarrasse.
– Vai se dar muito mal com isso, filho – o magricela cuspiu, e então um cachorro saltou no braço dele, e, na confusão, a capa de Rod foi rasgada.
O grandalhão, apesar da aparência intimidante, parecia assustado. Num gesto brusco, ele arrancou a espada da bainha de Rod e o arremessou para dentro do beco. Trançando nas próprias pernas, Rod rolou para o chão. Ao se virar, viu o magricela se desprender do cão, e os dois sujeitos escapulirem do beco.
Um tremor de raiva e alívio irradiou-se por Rod, e ele levou a mão à nuca, a fim de avaliar se havia ferimento. Tratavam-se de dois homens à margem da lei, mas, para a sua sorte, a presença de um mero cão de rua fora o suficiente para abalar a confiança deles.
Foi nesse instante que o cão rosnou para Rod.
– Calminha, rapaz, calminha.
Rapidamente Rod se pôs de pé e olhou para os lados, sem saber ao certo o que procurava. Então, com cuidado, enfiou a mão no bolso sob a luneta, e, assim que sentiu a solidez gélida de sua relíquia, apertou-a com força. A outra mão, esticou para que o cão a cheirasse.
– Calminha, rapaz, calmiiinha!
Com os dentes à mostra, o cachorro foi se aproximando. Era um animal bem maior do que tivera como primeira impressão. O pelo era denso e cinzento, com enormes manchas negras no dorso e na cabeça. Os olhos se ocultavam sob o pelo, mas davam a impressão de transmitir uma mescla de receio, dúvida, raiva.
O rosnado se intensificou de repente.
Retirando a mão do bolso, Rod levou-a para trás de si, com o animal aproximando-se da distância que desejava.
– Calmiiinha, rapaz! – Quando o cachorro começou a cheirar sua mão, Rod endireitou um pé, alinhando o corpo. Porém, após dar uma boa olhada em Rod, o animal escondeu os dentes, virou-se e disparou do beco.
Rod ficou um tempo imóvel. Depois, ao trazer aos olhos o punhal que podia jurar ser o alvo dos ladrões, riu para si mesmo.
Talvez eu mereça tudo o que está acontecendo.
Rod não havia mencionado uma palavra sequer sobre aquele punhal, um objeto que agora parecia o epicentro de uma vida repleta de perigos. Cada vez que seus dedos roçavam naquele cabo frio, uma mistura de esperança e medo se agitava no peito, um lembrete constante do que ele havia feito e de tudo que estava em jogo. Havia sido alertado dos riscos, era verdade, mas nunca imaginou que seu gesto pudesse despertar tanta ira e revolta em tantas pessoas ao mesmo tempo. Seguia todas as orientações com rigor férreo, mas as perseguições não cessavam, e agora, enquanto olhava para o punhal, pensava: Esse punhal… o preço que estou pagando por ele é mais alto do que eu podia imaginar. Mas se há uma chance de trazer minha mãe de volta….
Rod também se indagava se não seria mais prudente avisar o pai de tudo que estava acontecendo. O problema era que seu pai tinha se tornado um homem duro demais. Depois que a mãe de Rod se fora, os olhos cinzentos dele estavam quase sempre austeros, e o semblante pouco se via sem aquela sombra solene de Senhor Grão-General. Hoje ele era um homem muito diferente daquele que Rod conhecera ao lado de sua mãe. Mesmo assim, a dúvida o atormentava. Em vez de seguir para o mirante da Torre dos Ecos, Rod sentia que devia ir ao encontro do pai. Apesar de tudo, talvez só ele pudesse ajudá-lo.
Espero que tudo isso não seja em vão.
Apesar das dores e da tormenta em seus pensamentos, Rod avaliou brevemente o estrago em sua capa. Aquilo não podia ter acontecido. Embora estivesse com raiva de si, precisava se apressar.
Recompôs então a veste e arrastou-se do beco, à procura da montaria.
Chegando à rua, girou a cabeça de um lado para outro.
– Maldição!
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Rodden foi longe demais, disse Attad a si mesmo, ao reabrir os olhos e regressar ao gabinete do governo, onde o Governador Dáriuss o aguardava.
– Algum problema com o seu filho, Attad? – perguntou-lhe Dáriuss, a voz carregada de impaciência.
Attad preferia não ter de responder aquela pergunta. Precisava partir o quanto antes daquela maldita cidade, mas parecia não haver uma única vivalma capaz de encontrar o seu filho. Rodden nunca agira desse modo, ao menos até antes daquele terrível dia com Eldric. Mesmo após o sumiço de Endy, Attad nunca tinha enfrentado tamanhos problemas com o filho como acontecia agora. Rodden sempre fora obediente e sensível às suas ordens, crescendo assim, com um caráter reto e inflexível, tornando-se um jovem de rosto atraente, olhos marcantes e músculos arrojados para o seu tamanho. Recentemente, no entanto, suas atitudes não eram mais condizentes com o temperamento gentil que havia herdado da mãe, e Attad não sabia mais como agir para mudar essa realidade. Talvez fosse a falta da mãe que começava a pesar na alma do filho, temia Attad. Especialmente agora que Rodden se aproximava da idade adulta, por certo muitas dúvidas enfim davam o ar da graça. Era até de se esperar que algo parecido um dia ocorresse, mas Attad não se sentia preparado para enfrentar mais esse desafio. Rodden era nada mais que uma criança quando Endy desaparecera, e Attad tinha plena consciência de que nunca fora capaz de suprir a ausência da mãe.
Para ser honesto, até hoje Endy fazia muita falta para ambos.
De todo modo, esse era um pensamento que não dava para compartilhar com o Governador. Sem nada melhor a dizer, Attad negou com a cabeça e bateu a porta do gabinete para trancá-la.
– Ótimo – disse Dáriuss ao se ajeitar na cadeira. – Pois o que deseja é da mais pura gravidade. Sabe o terror que causaria cancelar as festividades e ainda reforçar nossas linhas de defesa? E essa história de partir em missão, Attad? Que missão é essa na qual você quer se meter? Enlouqueceu de vez, foi?
Attad prendeu o ar e então se dirigiu à ventana do gabinete. No tempo em que apertava o lenço que pendia do punho, espiou cautelosamente a praça lá embaixo e o beiral que circundava o palácio. As mãos não paravam de formigar, e ele se via em dúvida com o que mais devia dar atenção. Apesar de tudo, seu filho nunca fora tão desobediente como vinha sendo nos últimos dias. Era fato que algo muito grave estava acontecendo, e Attad perguntava a si mesmo de que forma poderia descobrir sem que fosse necessário pressionar Rodden outra vez. Não era como um pai rude e agressivo que queria que o filho o enxergasse. E nem era assim que Attad queria se ver novamente. Agora, como os homens do general Kregg podiam ter perdido seu filho de vista, Attad ainda lutava para achar uma resposta.
Ao puxar um fruto-de-mago do bolso, jogou-o para dentro da garganta. Como Endy lhe fazia falta nesses momentos. Ela certamente saberia como agir.
– Precisamos impedir o crescimento de um novo inimigo, Dáriuss – respondeu, voltando-se para o Governador. – É necessário conhecermos melhor quem iremos enfrentar, e eu não tenho mais ninguém de minha confiança disponível. Essa invasão dos Povos-Sem-Rei indica que tempos difíceis estão por vir.
– Tempos difíceis… – Dáriuss esmurrou a mesa diante dele, alçando um eco seco ao gabinete. O Governador já era um homem complicado quando herdou o trono de Soberannia após a morte do pai, e, desde então, só piorava com as constantes adversidades que fazia o seu governo sangrar. O homem alto, de perfume agradável, com barba e vestes bem delineadas, tinha dado lugar a um senhor austero, de barba cheia e imprecisa, repleto de rugas e preocupações. Inclusive havia tempo que Attad não o encontrava ao lado de uma bela cortesã. Dáriuss ainda costumava a cavalgar pelas manhãs na cidade, um dos poucos hábitos que conseguira manter. Mas até esse gesto tinha se tornado raro nos últimos dias. – Um sol de sombras aparecendo no céu… – continuou Dáriuss – Grão-Mestres decapitados… pessoas adormecendo para sempre… ataques aos nossos Fortes… e você querendo partir para os confins do mundo pra quê? Pra espionar os Povos-Sem-Rei?! O que mais os enviados descobriram, Senhor Grão-General? Vamos! Eu preciso de uma boa notícia.
Attad respirou fundo. O que queria mesmo era evacuar aquela cidade, mas não adiantava se exaltar. Dáriuss tinha lá sua razão. Muitos dos problemas que Soberannia vivenciava não tinham origem nas atitudes egoístas e mal pensadas de seu governo, embora isso não atenuasse a culpa de ações imprudentes que deviam pesar sobre a consciência do Governador.
– Os enviados não tiveram êxito algum, Dáriuss. Nenhum sinal da tal criatura que os rumores mencionavam. Mas, confirmaram a existência daquela estranha doença se alastrando pelo norte de Fúria. – Dando outra olhada à ventana, Attad reprimiu as palavras seguintes. Tinha de ir atrás do filho, não podia ficar municiando Dáriuss com acontecimentos que ele jamais compreenderia. Para o bem de todos, e até para que o próprio Governador pudesse sonhar com dias melhores, Attad e Rodden precisavam partir o quanto antes daquela maldita cidade. – Faz dias que nem os Fortes de Resplendorr nem os de Essência sofrem novos ataques. Mas me chegou um relato sobre uma estranha agitação em nossos territórios. – Attad foi então até a mesa de Dáriuss e, inclinando-se à frente, pousou cuidadosamente as mãos nela. – Dáriuss, não podemos mais fingir. Nosso maior problema começa hoje à noite. Cem dias de festividades, com todos esses tremores…
Dáriuss debruçou-se na mesa, em direção a Attad.
– Não havia nenhum punhal com Eldric, está certo disso? Certeza que ele não era um Herdeiro das Sombras ou um… bem, você sabe.
Attad meneou a cabeça negativamente ao se retesar. Em seguida, seus olhos caíram sobre malditas marcas roxas na mão. Dias haviam se passado desde o Concílio, e a mordida ainda ardia feito brasa.
– As pistas não eram verdadeiras, Dáriuss. Como disse, essa história dos tais Magníficos não parece real.
– Pros infernos o que pensa, Attad! – Dáriuss se afastou, tornando a se ajeitar. – Já lhe disse mais de uma vez. Quero aquele punhal e quero a cabeça de quem o roubou empalada nos muros de meu palácio. Há alguma coisa errada com essa história que trouxe de sua última viagem. Ah, sim, estou certo que há. Eldric foi morto por causa do punhal. Do meu punhal, ouviu? Não confio nos essenos, Attad. O desgraçado que cortou a garganta de Agnis estava a mando de Évelyn ou desses tais Magníficos. Eu era o alvo, Attad, e Lorde Éveru só pretendia terminar o trabalho. Pagaria o que me pedissem para provar que aquela regente cretina tem relação com tudo isso.
– Não creio que a Regente Évelyn tenha parte nisso, Dáriuss. E Lorde Éveru afirma que não estava aqui matá-lo.
– Então o que aquele infeliz fazia em meus aposentos sem que ninguém soubesse o que estava fazendo ali?
Attad massageou a barba. Já imaginava que esse assunto viria a qualquer momento para o centro daquela discussão. Sua amizade com Éveru estava sob forte ataque desde o dia em que Dáriuss fez de Éveru seu prisioneiro. Mesmo assim, aquela questão o deixou sem palavras.
– Se estão vindo atrás de mim, vou precisar de mais homens seus, Attad. Não posso continuar desconfiando da minha própria sombra. Sei que Évelyn há muito anseia pela minha cabeça. E você bem que podia arrancar essa confissão de Lorde Éveru. Só mais essa vez, como antigamente. Garanto que não haverá testemunhas que não sejam da minha confiança. Estou disposto a lhe conceder muito mais agora, Attad. Que raios falta para concordar em rever o nosso acordo?
Attad engoliu em seco. Lembranças repentinas lhe vieram à mente, gritos e suplícios de uma época que desejava esquecer. Imaginar-se torturando a única pessoa que o ajudou no período mais difícil de sua vida era algo que ele não devia nem pensar. Se Attad estava ali, de frente para Dáriuss, era pela força que Éveru lhe dera, incentivando-o a vencer o desejo pela morte. Se Attad ainda respirava, Éveru tinha grande parte no feito.
Foi então que a voz espessa do Conselheiro-Mestre Elmon ressoou do outro lado da porta.
– Meus senhores… Os convidados se aproximam.
Só faltava essa, pensou Attad.
– Dáriuss… – Attad parou um momento, controlando o ímpeto. Tinha total ciência da importância de convencer o Governador a cancelar as festividades sem que fosse necessário lhe revelar tudo. Uma guerra sem precedentes pairava sobre Soberannia, mas o orgulho de Dáriuss jamais o permitiria enxergá-la por si só. Falar a respeito dos verdadeiros perigos que se aproximavam estava estritamente proibido, sabia bem disso, mas Attad começava a ficar sem opções. – Meus homens já estão atrás do que realmente precisa. Não vou arrancar uma confissão de Lorde Éveru. Meu juramento a seu pai, Dáriuss… Não posso mais fazer isso. E não é oportuno ressuscitar os termos do nosso tratado. Não agora. Estamos tratando do cancelamento das festividades. Isto, sim, deve ser feito agora.
– Gastei anos de minha vida costurando esse pacto, compreende isso? Se ao menos pudesse contar com um pouco mais da sua compreensão, Attad. O que o Imperador irá pensar de mim se eu fizer como me pede?
O perigo era real e iminente, como Dáriuss podia pensar apenas em si?
– Não há escapatória, Dáriuss. – Foi a vez de Attad se debruçar sobre a mesa. – Precisamos estar preparados para enfrentar o verdadeiro inimigo. E não são apenas os Povos-Sem-Rei a quem me refiro.
– De novo essa história de forças sobrenaturais, Grão-General?
Dáriuss o encarou com um olhar duro, mas Attad não recuou. Então, lentamente o Governador foi se desviando e se aconchegando em seu assento. A dúvida povoava-lhe o semblante, era evidente, no entanto Attad tinha de manter a calma. Não era o momento de atitudes que trouxesse à tona novas preocupações. Não podia se precipitar outra vez. Dessa vez, Dáriuss estava cercado.
– Faça Elmon entrar, Attad.
Aquela ordem pegou Attad de surpresa. Profeciano de nascença, agora, além de Conselheiro-Mestre de Soberannia, Elmon era membro da Corte de Conselheiros do Império, cujos atos sorrateiros frequentemente desafiavam a autoridade de Attad. E se, antes mesmo, a relação com o outro homem jamais lhe inspirou qualquer confiança, desde o desafio de Elmon ao filho de Attad, ela havia se tornado perigosa de vez. Desista do desafio, Elmon, havia imposto Attad, do contrário, ordenarei que o levem aos confins de Soberannia, e nem mesmo o Imperador ou o seu Grão-Mestre em Profecia irão conhecer o que lhe ocorreu depois disso.
Naquele dia, Attad conseguiu obrigar Elmon a recuar do desafio. Era-lhe claro que a raiva que o Conselheiro-Mestre jurara sentir de seu filho não tinha como base honesta a vergonha que Rodden lhe fizera perante a Corte de Conselheiros. A verdade era que Elmon desejava atingir Attad com aquele desafio estúpido. Mas isso agora tanto fazia também. Porque a rivalidade demonstrava novamente a sua face. Designado a recepcionar os convidados até que Attad tratasse com Dáriuss sobre o cancelamento da Grande Festa de Paz, Elmon não só havia desobedecido às suas ordens, como, esperava para entrar no gabinete do Governador.
– Meus senhores… – teimou Elmon.
Com um suspiro de raiva, Attad se encaminhou até a porta do gabinete e a abriu.
Deparou-se então com o Conselheiro-Mestre já debaixo do pesado batente, com uma expressão que podia jurar ser de divertimento.
– Quanta teimosia, ilustre Grão-General – provocou-lhe Elmon. – É mais que tempo de aproveitar as festividades e abandonar o preto dos Governadores, para vestir o vermelho sangue do Grão-General que é, não acha ilustre Grão-General? Se bem me lembro, neste ano completa-se vinte anos que o então Governador de Fúria se curvou ao Comandante mais poderoso do Império. Devia honrar-se com as cores apropriadas para esse período, não acha? Que luto é esse que nunca se encerra?
Attad se fazia a mesma pergunta todos os dias. Seu coração, outrora repleto de amor e alegria, agora se assemelhava a um campo devastado e vazio, com o qual precisava conviver, e ninguém ao redor jamais conseguiria compreender. Cada passo seu, cada palavra, cada pensamento; apesar dos anos, a dor continuava forte e dilacerante, como uma força imutável que sempre renascia. Nem mesmo o peso daquela vestimenta preta não conseguia representá-la. Talvez fosse a maior prova que poderia oferecer aos Deuses, de que seu amor era capaz de sobreviver a tudo, mesmo perante trevas tão densas e profundas. Mas isso era algo que um sujeito desprezível como Elmon nunca iria entender.
– Para o seu bem, Conselheiro-Mestre, não se atreva a se referir a minha esposa outra vez.
– Não me referia a sua falecida…
– O que deseja, Elmon? – Dáriuss interveio, exigindo saber.
Elmon pareceu congelar naquele instante. Em seguida, ele arqueou os lábios num leve sorriso desdenhoso e, sem completar a fala, trombou em Attad e foi se arrastando para dentro do gabinete.
Por um instante, o ódio se apoderou de Attad. Fechando as mãos, lutou com todas as forças contra o desejo de arremessar um punho fechado contra a cabeça do Conselheiro-Mestre. Ao sentir um novo formigamento nas mãos, apertou-as ainda mais forte, na tentativa de aliviar o incômodo e a tensão. E, mesmo furioso, deu um passo para fora do gabinete e investigou o longo corredor que se estendia em direção as entranhas do palácio. Sabia que não podia perder a calma, mas aquela fora por pouco.
– Perdoe-me a intromissão, Soberano – ouviu Elmon dizer, lá dentro. – Senti no dever de vir em pessoa para alertá-lo da chegada dos convidados. Os sábios bem o advertiriam que cancelar as festividades a uma altura dessas soaria como uma afronta aos nossos aliados.
– Já que chegaram, por que não os foi receber? – Retornando para dentro do gabinete, Attad bateu a porta com raiva para trancá-la. – As ordens, até onde sei, eram estas, Conselheiro-Mestre. Ou não eram?
– Acalme-se, Attad – Novamente Dáriuss interveio, e os olhos de Attad de imediato saltaram sobre Elmon. Mesmo sendo membro da Corte de Conselheiros do Império há pouquíssimo tempo, Elmon gozava de bom prestígio com o Imperador, o que fazia Dáriuss respeitá-lo muito além do desejado. Com isso, Attad já até calculava o quanto suas chances de domar Dáriuss se reduziriam caso permitisse que aquele verme continuasse a tagarelar.
– Apesar dessa doença terrível e de todo o pavor que se alastra pelo surgimento daquele sol de sombras, gente de toda parte veio para cá – Elmon continuou com a ladainha. – Lordes e cavaleiros das fronteiras mais longínquas de Soberannia; nobres de Resplendorr e Essência; espadachins e mestres de armas de Fúria. Até de Profecia vieram visitantes. E agora simplesmente comunicamos o cancelamento?! Como os conselheiros reagirão? O Soberano já ponderou as consequências?
Attad apertou o lenço preso ao punho.
– Quem chegou afinal? – Ele tentava não se exaltar, mas a dúvida ganhava corpo em sua alma. Pôr ou não aquele verme para correr?
– As estrelas têm os seus mistérios, Soberano. – Para piorar, Elmon insistia com o falatório. Nitidamente ele evitava encarar Attad. – Já os Deuses têm os seus próprios segredos. Não há nada a temer, até porque os novos soldados, de vossa guarda particular, estão assumindo seus postos hoje, Soberano…
– O Senhor Grão-General lhe fez uma pergunta, Conselheiro-Mestre – advertiu Dáriuss.
O semblante de Elmon se avermelhou em seguida, e Attad se viu forçado a reprimir um sorriso. De alguma forma, seus conselhos tinham causado algum desconforto em Dáriuss. Talvez nem tudo estivesse perdido.
– Claro…, o Grão-General, claro… – disse Elmon, a voz embargada. – Não se trata de uma comitiva numerosa, cheia de carruagens e aparatos como era de se esperar. Trata-se de um agrupamento pequeno, trinta ou quarenta cavaleiros no máximo. E se bem ouvi, quatro ou cinco deles se destacaram e avançam à frente.
– E onde eles estão agora? – questionou Attad.
– Até onde me chegou, Senhor Grão-General, já atravessaram as barreiras do último Forte – respondeu Elmon. – A qualquer momento estarão aqui.
Elmon enfim relanceava Attad. Havia, no entanto, um brilho desafiador em seu olhar, que logo se estreitou com os olhos.
– Soberano… – nesse instante, Elmon se projetou sobre a mesa e segurou o braço do Governador –, não arrisque a excepcional reputação de Comandante-mor justo e honrado que construiu. Como Conselheiro-Mestre deste país, eu insisto: não permita que o seu maior representante parta em missão ou evacue essa cidade. Envie-o imediatamente para que receba os convidados…
– Desde quando um Conselheiro-Mestre dá ordens a um Senhor Grão-General? – a mão de Attad voou no colarinho de Elmon e o puxou com tamanha força, que obrigou o outro homem a se soltar de Dáriuss. – Que autoridade pensa possuir sobre mim, Elmon?
– Não… nenhuma… O Senhor Grão-General não está fazendo bom juízo dos meus conselhos. Os Deuses bem sabem.
Então os Deuses sabem, é verdade? Attad apertou com mais força a gola de Elmon. Será que aquele verme tinha ideia do que os tais Deuses estavam prestes a fazer com o mundo?
– A mim, Conselheiro-Mestre, os seus Deuses nunca pareceram saber de nada sobre ninguém. A mim, eles servem apenas como subterfúgio de línguas soturnas como a sua.
A boca de Elmon se retorceu em seguida, mas Attad não o largou. Agora não havia alternativa. Depois daquela audácia do Conselheiro-Mestre, Attad precisava ficar a sós com Dáriuss para tratar de seu mais importante pedido. Com tudo o que estava acontecendo, não podia permanecer mais tempo em Soberannia, mas tampouco podia deixá-la à mercê de ratos mal-intencionados como Elmon. Por isso, contava os instantes pela ira do Conselheiro-Mestre. Ao menor esboço, Attad se aproveitaria para pôr aquele verme para correr.
Antes disso, porém, o Governador Dáriuss sentenciou:
– Está decidido, Attad. Não aceito que se ausente de suas responsabilidades. Receba os convidados por mim. A Grande Festa de Paz vai acontecer.
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Suas pernas tremiam como tivessem vontade própria.
Mesmo assim, Rod continuava firme no trajeto rumo à Torre dos Ecos.
O perdão de seu pai dependia muito do êxito daquele esforço, além de que era preciso alcançar o mirante a tempo de evitar um desastre bem maior. Mas por que seu pai tinha de ser um homem tão ético e tão teimoso ao mesmo tempo? Rod sabia que ele evitava dar ouvidos a conversas estranhas e que se orgulhava em agir sob o rigor da lei e da ordem. Entretanto, Rod nunca imaginou que iria temer tanto as consequências de tudo que havia descoberto.
Especialmente do que fora obrigado a fazer para descobrir.
Como pude fazer o que aquele demônio me pediu?
Até por isso, após atravessar a ponte que ligava a parte central da cidade à região mais baixa, não pensou duas vezes. Ignorando a multidão de olhos hostis que o acompanhavam, Rod decidiu se aventurar pelo labirinto de becos que margeavam as ruas mais perigosas da Fortaleza Montanhosa.
Atravesse o mundo a pé se for necessário, garoto, dissera-lhe o demônio. Porque, sem uma prova crucial, seu pai nunca irá acreditar em você.
Mas havia um grande problema naquele percurso.
Sede do poder de Soberannia, a Fortaleza Montanhosa não era uma mera fortaleza, com altas muralhas e guerreiros e cavaleiros a postos. Era uma imensa cidade na verdade, tão grande que, de ponta a ponta, gastava-se boa parte de um dia na travessia a cavalo. Elevada em três níveis, cada qual com sua própria muralha e regras, contava com pontes levadiças que interligavam os níveis e faziam a cidade parecer ainda mais monumental.
Ascendendo em pedra talhada, em torno de uma montanha sem nome, a Fortaleza Montanhosa, em sua parte mais alta, o Superior, recendia a ouro e flores, com jardins bem floridos e praças agradáveis, onde casais podiam se encontrar. Ali, palácios, mansões e edifícios marchavam em perfeita harmonia, à beira das largas ladeiras de pedra que se esticavam em direção ao Palácio Elevado. Era a região menos habitada da cidade, onde somente nobres e guerreiros de elevada patente podiam perambular.
Nos níveis abaixo, porém, a realidade era completamente outra.
Um puxão repentino no braço arrancou Rod de suas reflexões.
— Layla…
— Você não devia estar aqui — disse-lhe Layla, com gestos aflitos.
Levando a mão às costas, Rod lançou olhares furtivos ao redor. Três homens esfarrapados riam à sombra da barraca de um agricultor, que gritava para espantá-los de perto de seu pequeno comércio. Em outro canto, um velho cuspia pragas para seu cavalo andar, mas o animal se recusava. Um pouco à frente, uma horda de crianças se movia de um lado para outro na rua, numa brincadeira que Rod desconhecia. Além disso, um mar de rostos severos bisbilhotava atentamente sua trajetória. Ainda que contra todas as boas razões, Rod tinha esperança de encontrar um rosto terrível e familiar, aquele que lhe prometera respostas.
— Não posso conversar, Layla. — Rod acelerou o passo. — Estou atrasado.
— Adrienn não esqueceu o que você fez. Ele jura que você trapaceou.
Rod riu meio sem jeito.
— E quem disse que eu tenho medo daquele imbecil, Layla?
— Você se esqueceu que lugar é esse, Rod?
Rod meneou a cabeça, negativamente. Como poderia se esquecer?
A parte central da Fortaleza Montanhosa, nomeada nos mapas como Médio, era bem mais povoada que o Superior. Contava com uma infinidade de becos, em meio a edifícios sujos, que se proliferavam num emaranhado de torres, estalagens e comércios que se confundiam com as moradias. Ali, apenas a rua principal circundando a montanha era inteira de pedra, e nem de longe lembrava o requinte e imponência que o Superior exalava. Ainda assim, o Médio era um lugar bem mais seguro e diferente da região logo abaixo, por onde Rod caminhava agora.
— Por que me segue, Layla? — Sua pergunta na verdade tinha uma mescla de gratidão e frustração. Layla sempre estava lá, e Rod tinha ciência disso. Mas ela também era um lembrete constante de suas complicações com Adrienn.
— Você não pode ficar perambulando aqui sozinho. Acho que precisa da minha companhia.
Depois de desviar de uma carroça, Rod acelerou o passo novamente. Em disparada, dobrou a esquina e assustou-se ao trombar num homem magro, de baixa estatura, cujo rosto bexigoso parecia com o de Adrienn. O homem rolou para o chão, mas, antes que Rod pudesse se desculpar, o sujeito se levantou e saiu correndo.
Rod ficou um instante sem reação. Então, ao balançar a cabeça, levou mais uma vez as mãos às costas. Recordar-se de seu rival, ainda que na face de outra pessoa, não lhe trazia bons pressentimentos. Afinal de contas, havia outro rosto, muito mais sombrio, que temia encontrar, mas não podia evitar de procurá-lo.
— O que aconteceu não pode acontecer mais, Layla.
Layla assentiu, baixando a cabeça.
Rod respirou fundo. Sua desconfiança era que Layla pudesse ser a razão do entrevo entre ele e Adrienn, já que ela era bastante amiga dele até se aproximar de Rod.
— Desculpa, Layla. Penumbra se tornou um lugar perigoso para mim, e eu não posso me indispor com mais ninguém por sua causa. — Rod então voltou a caminhar.
Inferior nos mapas, Penumbra para a população; o mais baixo dos níveis era a entrada para a cidade, a região mais abarrotada da Fortaleza Montanhosa. Ali era um lugar enfestado de malfeitores e criminosos, onde notícias e mentiras corriam lado a lado, como fossem verdades absolutas. Em Penumbra, as ruas de terra cheiravam a dejetos humanos, e a lei seguia os próprios caminhos, com os mistérios de uma justiça inexplicável e traiçoeira, onde membros da guarda do Império costumavam a se arrepender por se aventurar sozinhos.
— O que aconteceu com a sua capa? — Layla indagou-lhe enquanto avaliava a fenda no tecido. A insistência dela em acompanhá-lo começava a enfurecer Rod. — E a espada? Onde está?
Rod fez apenas um som com a garganta em resposta.
— Vai mesmo fazer vigília hoje? — Layla não se dava por vencida. — Você não tem medo de dormir lá e não ter ninguém que consiga acordá-lo depois?
Rod tocou o bolso onde guardava o punhal, sentindo um vazio. O objeto que ele acreditava ser a sua salvação agora parecia um aviso mudo de sua ingenuidade.
— Há coisas piores que este sono, Layla.
— É que essa doença é muito triste, Rod. Também deve ser muito triste lá no alto, no mirante. Acompanhar a chegada das autoridades e nobres e não poder participar das festividades. Eu não desejaria ficar sozinha.
Chegando à ponte levadiça que levava à Torre dos Ecos, Rod parou e massageou as costas mais uma vez. Sozinho, repetiu ele a si mesmo. Eu sempre estive sozinho, Layla. Em seguida, inspirou o ar gélido das profundezas da montanha a fim de aliviar a tensão dos músculos. Pelo menos não havia mais motivo para tanta pressa, embora ainda restasse a tarefa mais árdua daquele dia.
Pouco depois, Layla correu até o vão na murada ao lado da ponte. De lá, gesticulou para Rod, as mãos ansiosas.
— Os convidados estão chegando.
Rod quis ignorar. Contudo, assim que olhou, deteve-se um momento, até que também corresse até o vão. Desprendendo a luneta do cinto às pressas, levou-a ao olho e, por um instante de puro terror, tentou decodificar a imagem, sem querer acreditar em nada do que via.
Um pequeno agrupamento de cavaleiros levantava poeira em direção à Fortaleza Montanhosa. Entre eles, o único homem que podia acabar com a sua vida. Já no alto, perdido no horizonte, o sol de sombras parecia abrir caminho para a catástrofe que se aproximava.
Tudo exatamente como o tal demônio lhe havia descrito.
— Não pode ser… — dizia Rod, quando uma voz familiar se anunciou.
— Pode sim, campeão.
Rod se virou de imediato.
— Adrienn…
— Os bons espíritos sempre fazem justiça, não é mesmo, campeão? — Adrienn estacou diante de Rod, a poucos passos. — Não pensei que fosse tão estúpido em vir aqui de novo. Mas já que me enganei, vejo que é oportuno acertarmos aquelas nossas pequenas pendências. O que me diz, campeão? Já está arrependido com a vergonha que fez de mim?
Rod recuou, mas deve ter andado de lado, pois suas costelas de repente afundaram-se nas engrenagens que moviam a ponte. A essa altura, um círculo humano já se formava para assistir à briga.
— Adrienn… sei que o que fiz não foi certo, mas… há algo muito grave ocorrendo aqui. Não posso explicar muito, mas preciso da sua ajuda.
A princípio Adrienn entortou a cabeça e então dirigiu um olhar consternado para Layla, o semblante totalmente surpreendido, e um vago fio de esperança se acendeu em Rod. Apesar de tudo, Adrienn não era má pessoa, e Rod não queria chegar a vias de fato com ele.
Porém, em seguida, os olhos dele se estreitaram, com um brilho frio de ciúmes correndo entre eles.
— Anda, campeão! — cuspiu Adrienn, ao arrancar a espada da bainha. — Puxe sua espada, e vamos dar um basta nesse mal-entendido. O que me diz, campeão? Já está arrependido com a vergonha que fez de mim?
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Suas veias ferviam quando Attad saiu num rompante do gabinete de Dáriuss.
A passos duros, cruzou as vísceras do Palácio Elevado, recolocando as manoplas e passando entre soldados apoiados em suas lanças, desprezando reverências, sem olhar uma só vez para trás. Ainda acabo com esse verme! Ao adentrar o saguão na entrada do palácio, avançou com os ecos metálicos da vestimenta ecoando pelas profundezas, até se pôr de frente para a estátua que lhe parecia a mais grave ofensa esculpida em pedra.
Attad a princípio queria fechar os olhos e buscar um pouco de paz. Sentia raiva, muito ódio na verdade, mas sentia também um terrível mau presságio. Aquele lugar poderia vir abaixo a qualquer momento. Em breve o caos se propagaria pelo mundo e nada podia ser feito. Mas o que mais Attad poderia fazer para que Dáriuss o ouvisse? Ainda que pudesse lhe revelar tudo, o Governador certamente não acreditaria em uma palavra que dissesse. De fato, não era fácil digerir histórias a respeito de ameaças sobrenaturais, e Attad por certo também morreria duvidando. No entanto, elas eram reais e logo estariam em toda parte.
Correndo os olhos pelos detalhes que faziam da estátua à sua frente uma perfeita imagem de si, tentava decidir se devia regressar ao gabinete de Dáriuss e se rebelar contra aquela sandice de manter as festividades. Talvez devesse simplesmente ir atrás de Rodden e partir de uma vez por todas daquela maldita cidade. Mas bem que Dáriuss merecia uma demonstração de poder.
Infernos!
Só de pensar nessa hipótese fez seus braços se aquecerem, e Attad precisou balançar a cabeça às pressas para afastar aquele pensamento. Não podia exigir que Éveru confessasse uma mentira, mas talvez não lhe faltasse coragem para fazer algo bem pior com Elmon ou com Dáriuss. O Governador não tinha ideia do que aquilo custaria a população da Fortaleza Montanhosa. Além do mais, se era incapaz de enxergar o verdadeiro perigo que os espreitava, Attad perguntava a si mesmo como o Governador podia requerer dele ainda mais homens e lealdade. Por que diabos Elmon teimava em se meter onde não era chamado?
Ao sentir um súbito formigamento nas mãos, Attad girou depressa sobre os calcanhares e arrancou a espada da bainha.
– Quem está aí?
Silêncio.
Attad foi se afastando da estátua, caminhando a passos lentos em direção ao centro do salão. Há tempos vinha sentindo aquela presença, mas ela nunca fora tão ameaçadora como naquele dia.
– Gosta de exalar poder enquanto contempla a sua homenagem, Grão-General? – ecoou uma voz alta. – Uma belíssima estátua, viu? Só não entendi as lágrimas e os lenços em ambas as mãos. Sabe dizer por quê?
Attad detestava enigmas. Olhou para todos os lados.
Nada.
– Aqui em cima, Grão-General – disse novamente a voz, agora vinda da cúpula do teto.
Logo que ergueu a cabeça, Attad teve um sobressalto. Já ouvira falar sobre muitos homens capazes de feitos impressionantes, no entanto, naquele momento, perguntou a si mesmo de que forma aquele sujeito havia chegado ali.
– As festividades vão acontecer, Senhor Grão-General, com a cidade ameaçando desabar ou não. Disposto a me ouvir por boa vontade ou prefere encarar a fúria de seus poderosos Deuses?
Attad enrijeceu-se. Por um instante preferia até duvidar da sanidade dos próprios olhos. No entanto, por mais que fosse difícil de acreditar, havia um sujeito terrivelmente familiar recostado na curvatura da cúpula do teto, que aparentava saber muito mais do que deveria. Pela posição que se encontrava, devia cair, mas o infeliz nem sequer demonstrava um sinal de temor.
– Guardas – gritou Attad. – Guardas!
– Não piore as coisas, Grão-General. Queira ou não, essa guerra contra os Deuses o alcançará. E alcançará a todos, em todos os cantos do mundo. Se não deseja mais me ver, basta que me diga o que fez com minha relíquia. Aliás, o que de tão importante precisa fazer em Profecia que o faz mentir para o Governador e até pensar em renúncia? O que tanto o aterroriza, Grão-General? Acaso essa cidade está mesmo à beira de vir a baixo?
O coração de Attad gelou. Ele relanceou a espada, mas preferiu não a puxar. Como aquele sujeito podia saber de tantas coisas a seu respeito? Passou então a estudar rapidamente os vitrais do saguão, evitando pensar no que aquele infeliz havia mencionado. O fogo vacilante das tochas não o ajudava, ainda assim Attad desconfiava que ali, em algum lugar, devia haver um caminho em relevo, invisível a olhos desatentos.
– Quem é você? A mando de quem me persegue?
– Questões difíceis, viu, Grão-General? – O estranho de novo o ironizava. – O que sou… acho que o Senhor Grão-General já deve desconfiar, e isso já lhe responde que não tenho um senhor. O que posso lhe dizer é que tive três personalidades recentes. Uma, a perda doeu, se bem que as forças maiores me recompensaram quando Ossani buscou transcender e acabou numa fogueira. A outra, fiquei feliz por me livrar dela tão depressa. Já a última que me restou foi Naréss.
Naréss…? Os pensamentos de Attad dispararam de vez.
– Lembra-se daquela noite, Grão-General? Não lhe avisei que se me entregasse aos demônios nunca mais se livraria de mim?
O golpe foi profundo e imediato. Como Attad não havia reconhecido aquele maldito? Ao passo que uma parte sua se recusava a acreditar no que estava acontecendo, a outra tinha consciência de que tudo era real e extremamente perigoso. Como Attad poderia partir para Profecia desse jeito? Ele nem sequer conseguia se decidir o que era mais perturbador: o fato de aquele sujeito estar em um local que mortal nenhum devesse chegar ou o próprio sujeito em si. Como Naréss conseguira transcender daquele modo? Como ele tinha conseguido escapar?
– A ambição pelo poder sempre abalou as estruturas do mundo, Grão-General. Não sente a ruína crescendo na alma deste Império?
Attad obviamente a sentia.
– Tente enxergar agora, Grão-General. Você pode estar a caminho de uma guerra sem precedentes, e vai precisar de mim. Eu não tive culpa pela morte de sua esposa, você devia saber disso. Em nome de uma força maior, deixe essa sua teimosia de lado e me ouça, é tudo que peço. Eu só quero ajudá-lo com os Deuses. Sempre foi o que eu quis. Não há razões para me temer.
– Não preciso da ajuda de criatura nenhuma. – Naréss é muito perigoso, havia-lhe advertido Éveru. Devemos ter toda a cautela dos sábios e sabedoria dos antigos para lidar com ele. – Eu não preciso da ajuda de ninguém, Naréss. – Attad já apertava o punho da espada quando o general Kregg surgiu na entrada do saguão. Nas mãos dele, o brilho afiado de um dardo cintilava no gatilho de sua besta. – Rápido, Kregg! – gritou, ao gesticular com urgência. – Venha!
– Eu não matei sua esposa, Grão-General. – O tom de Naréss agora era de ameaça. – Mas já que insiste com essa história, acho que também vou à presença do Rei-Sem-Rosto, em busca dos segredos que irão selar o destino do mundo inteiro.
Quando o general Kregg se aproximou, Attad estendeu-lhe a mão, mas o chão sob seus pés de repente começou a tremer, com as paredes do palácio rangendo como se quisessem vir a baixo. Attad se equilibrou como pôde, mas Kregg trançou as pernas, soltando a besta.
A arma ricocheteou no chão uma, duas, três vezes, e então disparou.
Um lampejo rasgou o ar no instante seguinte, e, antes que Attad pudesse se desviar, o dardo atravessou-lhe a mão.
– GRRRRRR… – Trincando os dentes, Attad agarrou-se à mão, lutando em desespero para desdobrar a mente e não perder Naréss de vista. O tremor, no entanto, intensificou-se, e Attad cambaleou de lado, o corpo subitamente estremecendo com o chão e com a dor. Na tentativa de manter o equilíbrio, concentrou-se no latejar da mão e no furioso movimento sob os pés. Deuses, de novo não! Assim que o tremor se acalmou, Attad rapidamente agarrou a ponta do dardo e, num puxão, arrancou-o de si.
Um espasmo propagou-se pelo seu braço em seguida, e Attad foi obrigado a apertar os olhos, sufocando a custo um grito na garganta. Pouco depois, um cheiro desagradável de sangue saltou-lhe às narinas e lentamente foi penetrando pelos pulmões, como um veneno amargo que revirava-lhe o estômago. Attad não imaginava enfrentar tamanha dor. Até por isso, demorou um longo instante até que pudesse retomar o total domínio de suas ações. Só então reabriu os olhos, bem devagar.
A essa altura, Kregg pairava à sua frente. A besta, de novo em mãos.
– Dá isso aqui, general! – Attad jogou o dardo no chão, arrancou a arma de Kregg e, mesmo sem outro dardo no gatilho, mirou na direção de Naréss. Infernos!
– O Senhor está bem? – Kregg ousou-lhe perguntar. Sabe-se lá por quê, parecia mais preocupado com Attad do que com as consequências do tremor. – O dardo pode ter rompido algum ligamento, Senhor.
– Viu um homem ou um vulto… Grrrrr… – Attad precisou ranger antes de prosseguir – …ou qualquer coisa assim, general?
– Não, Senhor. Não vi ninguém.
Devia ser o bastante para Attad se apressar a cuidar do ferimento. Em vez disso, atirou a arma para longe e avançou no pescoço de Kregg, puxando-o com força pelo gorjal.
– Como permitiram a entrada de um intruso no saguão? Diga, general, COMO?
Kregg o encarou sem esboçar qualquer reação. Era um homem largo, robusto, bem maior que Attad. Era também o mais leal entre todos os generais, o único em quem Attad podia confiar. Só os Deuses sabiam como Attad odiava homens desastrados.
– Ache-o agora! – Attad empurrou-o para trás e fechou a mão, pressionando-a até sentir os dedos estalarem e seu sangue correr entre eles. Grrr… Como aquilo doía.
– O Senhor vai precisar de ajuda com esse ferimento – disse Kregg com evidente preocupação. Attad já não sabia se aquilo devia irritá-lo ou não. – O Senhor conseguiu convencer Dáriuss a cancelar as festividades?
Attad respirou rápido e profundo por um longo tempo, mas, por fim, abanou a cabeça negativamente, pressionando a boca até sentir o rosto formigar. O momento era totalmente inconveniente, no entanto aquela pergunta tinha séria relevância. Ao piscar os olhos algumas vezes, respirou fundo na tentativa de se reaver do horror que sentia. A dor de uma flecha não se compara a dor que os Deuses irão causar no mundo. Então, lentamente moveu a cabeça de um lado para outro, sondando as consequências do tremor. Aquele fora o maior desde que os tremores haviam começado. Seu tempo definitivamente estava se esgotando.
– Tive complicações com Dáriuss, Kregg. Devemos redobrar a guarda e torcer para que nada grave ocorra. – Voltou-se em seguida para o general. – Ainda assim, parto com Rodden amanhã pela manhã. E ele? Já o encontraram?
O general abriu a boca, mas ficou um instante quieto, até baixar os olhos para a mão de Attad.
– Descobrimos que seu filho trocou a vigília que faria na Torre Alta, por outra, na Torre dos Ecos. – As palavras de Kregg morreram, e Attad novamente sentiu-se golpeado. Como Rodden podia fazer aquilo com Attad? Que raios ele tanto procurava em lugar como Penumbra? – Já enviei meus melhores homens atrás dele, Senhor. Agora eu insisto. Precisa tratar desse ferimento. Mando chamar um curandeiro?
– Para os diabos os curandeiros, Kregg! – Attad mordeu o lábio, evitando olhar para a mão. Agora sentia o sangue escorrendo pelo braço e, como Kregg demonstrava grande apreensão, aquilo começava a assustá-lo. O ferimento não podia ser a sua maior preocupação. Será que ninguém era capaz de enxergar o seu verdadeiro temor? – Não estou disposto a tolerar novas falhas, general. Ache o maldito que estava aqui e traga-o a mim. E ache Rodden e não o perca mais de vista.
Kregg assentiu com a cabeça.
– Sim, Senhor. Com a sua licença. – E inclinou o corpo, aguardando a permissão para se retirar, e mais uma vez Attad respirou fundo. A fúria parecia entrelaçada a cada veia de seu corpo, no entanto o general não tinha culpa alguma. Não fora ele que tinha dado a sentença de Naréss. Kregg apenas demonstrava o quão leal podia ser. E, além do mais, aquele era um fato que não podia se tornar chacota entre os guardas do palácio. Aquilo era grave demais para chegar ao conhecimento de seus inimigos.
– Soube que os novos soldados da guarda de Dáriuss estão assumindo posição hoje, e eu desconheço sobre a lealdade deles, Kregg. Por bem ou mal, o Conselheiro-Mestre não deve saber de uma palavra a meu respeito a partir de agora. – Attad rangeu outra vez e, só diante da concordância de Kregg, continuou: – E mande que me tragam um curandeiro, com panos quentes e água perfumada, na entrada do palácio. Os convidados estão a caminho. Não posso recebê-los assim.
– Convidados?! Eles ainda não chegaram, Senhor.
– Não!? – Dessa vez foi um súbito alívio que povoou a mente de Attad. Será que alguma força enfim conspirava a seu favor? – Então quem chegou?
Kregg pareceu engolir em seco ao se retesar.
– O Senhor não vai gostar nem um pouco em saber.
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– Preciso encontrar meu pai antes daqueles cavaleiros – disse Rod, a voz abafada pela agressão de Adrienn à porta do mirante. Não posso deixar que aquele homem acabe com a minha vida.
– Você deixará Adrienn trancado aí dentro? – indagou Layla. – Ele está todo machucado, Rod.
Tum! Tum! Tum…
– Da próxima, não vou poupá-lo, seu cretino – a voz de Adrienn soava ameaçadora do outro lado da porta. – Eu vou matá-lo, campeão, oh, se vou!
– Ele bateu com a cabeça por causa do tremor, Layla. Um pouco de tempo lhe fará bem. – A fúria de Adrienn começava a fazê-lo se arrepender. Não era bem aquilo que Rod pretendia. Na verdade, não era nada daquilo. Deuses, o que eu estou fazendo? – Layla, como você sabia dos convidados?
– Eu… eu… não disse convidados.
– Falou, sim. – TUM! TUM! TUM… A porta atrás de Rod estremeceu-se com maior violência. – Lá na ponte. Eu me lembro bem.
Os gestos de Layla de repente ficaram tensos.
– O que isso importa, Rod?
TUM! TUM! TUM…
– Nem todos sabiam dos convidados.
– Você deve ter me contado, Rod. – Layla parecia cada vez mais tensa. – Está tentando desviar o assunto, não é? Por que aquele homem falou que seu pai corria perigo, Rod? Por que ele pediu para você ir às Ruínas de Antares? E quem são os tais farsantes que ele falou? Quem era aquele homem, Rod?
TUM! TUM! TUM…
– Você vai MORRER, seu merdinha! – esbravejou Adrienn. – OH, SE VAI!
Rod abriu a boca para inventar uma desculpa, mas as ameaças se intensificaram, fazendo-o desistir. Rod se lembrava vagamente do início da inimizade com Adrienn, durante uma caçada, em um dos muitos treinamentos que tiveram. O que nunca imaginou é que chegaria ao ponto de precisar trancafiá-lo naquele mirante. Mas o sujeito, de uns tempos para cá, parecia persegui-lo, procurando emboscá-lo nos mais diversos lugares, de modo que quase sempre se apresentava como um obstáculo em seu caminho. Embora odiasse as atitudes do outro homem, Rod tinha mais pena do que medo. Ainda assim, Adrienn não era o motivo central de sua inquietação. O pedido daquele homem, esse sim o perturbava, e Rod não conseguia se decidir. Mas como Layla podia saber dos convidados? Será que Rod realmente lhe havia contado e não se recordava? Nesse caso, que mais podia ter dito ou feito na presença daquela menina? Ao menos, no ponto em que as coisas haviam chegado, aquilo não fazia grande diferença. Rod não podia perder mais tempo.
– Melhor que nem saiba quem aquele homem é, Layla. E nem o que ele queria comigo. – Depois disso, Rod olhou para a porta que o separava de Adrienn. Tum! Tum! Tum… Em seguida, precipitou escadaria abaixo.
Instantes depois, Rod descia os estreitos degraus da Torre dos Ecos, desviando momentos antes das estátuas pelo caminho, enquanto se indagava como faria para alcançar o Palácio Elevado antes dos cavaleiros. Os farsantes não podem alcançar as Ruínas de Antares, repetia ele a si mesmo. Você precisa fazer alguma coisa, Rod.
Mas o quê?
Ao chegar ao nível térreo, apoiou-se à parede e massageou as costas, na tentativa de obter uma trégua das terríveis dores que se multiplicavam em si. Logo depois, espiou a rua deserta e ergueu a cabeça, para o alto da torre. Um sabor amargo subiu-lhe a garganta.
Talvez tivesse sido melhor ter duelado com Adrienn.
Layla ofegava quando o alcançou. As mãos dela tremiam ao gesticular.
– Pensei que não ia me esperar.
Aquela não era má ideia. A julgar pelo olhar franzino e a baixa estatura, Layla parecia ter menos de treze anos, embora essa não fosse a sua verdadeira idade. O cabelo, embora curto, escorria como uma espessa cortina negra pela testa, e as vestes, quase sempre sujas, por vezes fazia Rod se indagar se ela não seria uma criminosa disfarçada de menina.
Esse é um tipo de pensamento que ninguém deveria ter.
Como ela ainda não tinha desenvolvido atributos femininos, Rod imaginava que talvez fosse por causa da doença que ela carregava. Porém, para o seu desespero, Layla vinha sendo a sua única companhia nos últimos tempos.
– Precisava ter roubado a espada de Adrienn? – Layla não se dava por vencida. – Além de abandono, você será acusado de roubo, sabia?
Infelizmente ela estava certa. Rod não tinha o que contestar.
– Minha mãe nunca aprovaria isso – continuou Layla, seguido de um longo suspiro. – Eu posso ser presa, Rod. Por sua culpa.
Rod nunca ouvira Layla se referir à mãe.
– E quem é a sua mãe, Layla?
Layla fez uma careta, talvez de espanto ou dúvida, e Rod se pegou pensando na sua. Endy… que nome mais lindo! Rod evitava pensar na mãe, mas, ultimamente vinha se indagando como ela seria caso ainda estivesse viva. Além do mais, será que ela aprovaria os seus atos ou ficaria ao lado de seu pai? Será que iria querer castigá-lo caso descobrisse o que Rod havia feito ou tentaria defendê-lo? Será que o ajudaria a consertar tudo? Talvez fosse melhor nem saber a resposta.
E enquanto Rod refletia, Layla balançava a cabeça e as mãos, como que contrariada ou incomodada com a pergunta.
– Esquece, vai – suspirou Rod. – Vem comigo.
Rod e Layla atravessaram a ponte levadiça e dispararam ladeira acima. Em outro dia qualquer, Rod não teria dificuldade em percorrer toda a enorme distância que separava a Torre dos Ecos do Palácio Elevado. Mas, naquele dia, seus músculos pareciam em chamas, as pernas, em total agonia. A queda do cavalo, a esticada pelas ruas de Penumbra, os alertas que recebera, a briga com Adrienn… Rod não queria nem pensar nas marcas que carregava no corpo. Deuses, o que estou fazendo?
Mal havia percorrido um curto trecho daquela ladeira quando parou. Não muito distante deles, do outro lado da rua, um cavalariço, um tanto familiar, rosnava a ira contra um grupo de crianças, tentando afastá-las dos cavalos dentro do pequeno estábulo. Rod até tentou evitar a ideia que de repente o dominava, mas por fim aliviou os pulmões, desistindo de lutar contra si mesmo.
Aquele definitivamente era o único jeito.
Layla se pôs à sua frente.
– Conheço esse seu olhar, Rod. No que você está pensando?
Desviando-se de Layla, Rod manteve a concentração no velho cavalariço enquanto tocava em sua relíquia. Àquela altura, não havia nada mais importante do que alcançar seu pai antes daqueles cavaleiros.
Preciso de coragem, disse ele para si mesmo, de muita coragem.
Aquelas palavras ecoaram nos pensamentos de Rod como fosse um fantasma do passado. Quando as ouviu pela primeira vez, seu temor era outro, e ele não sabia precisar qual deles era maior. A primeira vez que as tinha ouvido fora no dia em que completava sete anos. Naquele terrível dia, em vez de ganhar uma espada para treinamentos como os filhos dos soldados soberanneses recebiam, Rod foi forçado a descer aos calabouços da Fortaleza Montanhosa.
– Aonde vamos, pai?
– Em breve saberá, Rodden.
Já faz um tempo que eu e meu pai estamos caminhando por um extenso corredor cheirando a fezes e urina. Meu pai segue à frente, rompendo a escuridão com uma tocha que ameaça se apagar, em meio a um frio acentuado, de doer os ossos. Ele está bastante estranho e quieto nesse dia. Seus olhos queimam em cinza, num sigilo frio e furioso, com uma sombra asseverando-lhe as feições. Sua expressão, embora atípica para a época, é muito parecida com a de hoje. Ainda assim, eu o acompanho de perto, desejando regressar a superfície mais que tudo.
Então descemos uma escada em espiral e chegamos a outro corredor, ainda mais escuro, com celas estreitas ladeando a passagem. Nesse instante, um burburinho repentino desperta-se nas trevas.
– Quem são eles, pai?
– Não os olhe, Rodden.
Meu pai aperta o ritmo, e eu me esforço para obedecê-lo. Nossos passos reverberam pelas paredes duras, e um feroz rumor de repente se eleva na escuridão. Sombras balançam de um lado para outro, a luz vacilante da tocha de meu pai penetrando nas celas como fossem assombrações. Entre uma claridade e outra, consigo distinguir uma mulher sem as mãos e um homem sem pernas, mas me intrigo mesmo com outro prisioneiro. Um homem de baixíssima estatura, cuja barriga saliente contrasta com os braços finos e ossudos. Durante toda a nossa passagem, o estranho prisioneiro mantém a cara enorme entre as grades da cela. O frio cavernoso daquele lugar me faz sentir falta dos meus cobertores.
Ao cruzarmos duas celas vazias, meu pai para. Com um gesto brusco, ele ergue a tocha, com a luz mergulhando na cela logo à frente.
Um homem careca, sentado no chão, vai então se clareando lá dentro, o que aumenta subitamente o meu temor. A pele do prisioneiro é mais escura que a de meu pai, mas a barba grisalha, escorrendo até o peito nu, é bem parecida. Trata-se de um homem forte, e, sobre ele, sinto uma sombra que parece densa de crueldade.
– Aqui está ele – meu pai diz ao prisioneiro.
– Ela não veio? – o prisioneiro devolve num tom grave e assustador. Eu não me lembro de ter ouvido uma voz tão ameaçadora como aquela.
Meu pai então dá uma negativa ao prisioneiro, e o prisioneiro balança a cabeça, levando a mão à testa. A sombra continua a ocultar a sua face, mas tenho a impressão de que o homem sentira algo, como se tivesse levado um forte golpe no estômago.
– O tempo passa depressa mesmo. – A voz do prisioneiro soa tão cortante quanto amargurada. – Quantos anos faz, filho?
Eu prendo o ar de imediato. Sei que a pergunta é para mim, mas minhas palavras parecem não ter força para cruzar a boca. Nesse instante, tento entender a razão de meu pai ter me levado a um lugar daquele.
– Sete – é tudo o que consigo dizer.
Em resposta, o prisioneiro faz um ruído que eu não tenho ideia do significado. Ele se levanta, se espreguiça com um ranger de ossos e murmura qualquer coisa incompreensível. Ele é um homem alto, com duas enormes cicatrizes nos braços. No peito, um amuleto, com uma pedra amarelada, faz a luz da tocha de meu pai tremular.
– Você decididamente se parece com o seu avô, filho.
Meu pai ri, mas não consigo identificar graça alguma em sua voz.
– Tenho deveres a cumprir, Lúciann. Vamos logo com isso.
– Quantas vidas os malditos farsantes me roubaram em todos esses anos, Attad? – O prisioneiro dá um passo vagaroso em minha direção e se debruça sobre uma perna e começa a massageá-la. Quando endireita o corpo novamente, retoma a lenta caminhada, até se aproximar das grades. Ele abre um sorriso cansado ao bagunçar o meu cabelo. – Quer aprender o segredo para vencer uma batalha, filho?
– Exércitos vencem batalhas – meu pai ruge, demonstrando grande impaciência. – Isso não faz parte do nosso trato.
– Sim, Sor Grão-General! – O prisioneiro balança a cabeça como que tomado por uma súbita irritação. Seu hálito é azedo quando fala. – Como queira! – Ele então segura o amuleto que pende de seu pescoço e, num único gesto, arrebenta o espesso cordão que o prendia. – Exércitos, torturas, mentiras… tudo isso vence batalhas, filho. – Ele de repente agarra a minha mão e a puxa com força por entre as grades.
Eu tento me desvencilhar, mas meus músculos parecem congelados. Mesmo assim, endureço o braço.
Esmagando o meu punho, o prisioneiro me força a abrir a mão.
– Os antarianos já diziam que entre um homem, sua espada e sua alma deve inevitavelmente haver muito mais coisas de valor – o prisioneiro diz, a voz agora fria como se estivesse mastigando gelo. Eu faço o possível para não grunhir, e o prisioneiro enfia o amuleto em minha mão e dobra os meus dedos sobre o objeto. Ele então me solta. – Senão, que serventia tem uma vida de poder oferecida pelos Deuses?
Meu pai bufa, e um estranho calafrio corre por minha mão. Eu a abro.
– Guarde bem essa joia, filho. – De novo o prisioneiro dobra os meus dedos sobre o amuleto. Só que, dessa vez, ele olha dentro dos meus olhos. – E guarde bem mais profundo o que lhe digo. Todo o homem que luta por uma grande causa precisa de coragem. De muita coragem! Especialmente para nunca temer as ações que serão necessárias.
Ao regressar do devaneio, Rod repetiu aquelas últimas palavras, como se somente agora pudesse compreendê-las. Coragem… Só preciso de coragem. E, após estudar os cavalos no pequeno estábulo do outro lado da rua, virou-se para Layla.
– Nunca alcançaremos os cavaleiros a pé, Layla.
– Está pensando em roubar aquele cavalariço, Rod?! Esqueceu que está em Penumbra?
Rod forçou um sorriso. Seu tempo estava se esgotando.
– Só um tolo se arrisca aqui, Rod – retrucou Layla, agitada. – Só um tolo envergonha o próprio pai.
– Um dia meu pai irá me agradecer, Layla. Confie em mim.
Layla fez uma careta, mas, mesmo assim, quando Rod cruzou a rua, ela o seguiu. E depois de se esconderem rente às fachadas dos prédios, pararam e aguardaram até que o movimento de pessoas diminuísse.
– Agora! – disse Rod, disparando.
Entretanto, ao se aproximarem do estábulo, Rod notou que o cavalariço não estava mais ali.
– Melhor assim. – Deu então uma boa olhada nas montarias. Havia ao menos duas dezenas de cavalos, mas apenas um tinha sela. – Layla, você vai ter que ficar… – virou-se para Layla, mas os olhos da menina de repente se arregalaram, e, quando Rod deu por si, uma coisa sólida golpeava sua cabeça.
Tudo ao redor estremeceu, e, em desespero, Rod tateou o ar às cegas, no esforço de se afastar do praguejar e dos violentos golpes que lhe acertavam nos braços, nas pernas, nas costelas. Por um instante de terror, a agressão cessou, e Rod parou de se mover, achando que o pior havia passado. Outro golpe, porém, atingiu sua testa em cheio.
A escuridão ameaçou abraçá-lo.
Firmando os pés, Rod evitou a queda, mas o mundo de repente parecia girar e girar, tragando-o para dentro de um breu sem fim. O desespero ofegante de Layla a essa altura soava-lhe longe, muito longe na verdade, com a voz carrancuda agora ecoando ameaças que pareciam vir de um lugar remoto, quase sobrenatural. Por mais estranho que fosse, nesse momento tudo parecia calmo e distante, como se repentinamente Rod estivesse cercado por uma força imensa de poder. Entretanto, no instante seguinte, as construções se remodelaram num foco turvo e oscilante, e, sem qualquer aviso, Rod se viu diante de seu agressor.
– Nosso amigo está preso. – Rod apontou para o alto da Torre dos Ecos, rezando para que Adrienn estivesse gesticulando lá de cima. – A porta… ela emperrou.
O agressor desviou a atenção para o alto da torre, e Rod pôde respirar brevemente, tirando proveito para avaliar o homem que o agredia.
Era o tal cavalariço.
Rod não o conhecia bem, mas já ouvira bastante a respeito de sua má reputação com crianças. O homem tinha um semblante fechado, severamente castigado pelo tempo, com o pouco cabelo desgrenhado, como fizesse dias que não recebesse algum cuidado. As rugas o faziam se parecer com um camponês, embora as vestes não fossem de pano simples. Metade da cabeça tinha feridas fechadas com sangue seco e a outra, o couro cabeludo surgia em linhas sinuosas, como se o cabelo tivesse sido escalpelado por uma lâmina cega.
Como esse homem fede!
Vestia um avental de couro, sujo de sangue, que dava a impressão de ser um tanto resistente a perfurações. Talvez não fosse sequer um mero cavalariço como parecia, mas Rod preferiu ignorar qualquer hipótese mais perigosa. Na mão, trazia um porrete e cheirava a fezes de cavalo.
– Essas portas… – o cavalariço ruminou. – Tem que trocá todas, já disse.
– Por isso viemos atrás do senhor. Precisamos chegar o mais depressa ao Médio, atrás de um ferreiro.
A expressão do velho homem passou de brava para desconfiada num instante, mas dessa vez Rod firmou um pé à frente, escondendo um punho fechado atrás do corpo. Nem de longe era seu desejo agredir um homem de idade avançada, mas àquela altura ele se via sem escolhas. Porém, logo depois, a boca do cavalariço se relaxou e o velho homem soltou uma gargalhada.
– Podia jurá que vocêis pretendiam me robá – disse o cavalariço, em meio às risadas. – Ia fazê vocêis lamentá ter vindo aqui.
Rod lançou um olhar rápido para Layla. Teria o velho homem mordido a isca?
– Um dia… foi igualzinho assim – continuou o cavalariço –, eu tinha acabado de dá comida pros meus cavalinhos. Aí, dois sujeitos, iguaizinhos a vocêis, proveitaram de um segundinho de distração pra levá embora meus animaizinhos.
– Ele pensa que somos ladrões! – Rod forçou uma risadinha enquanto relanceava Layla mais uma vez. – Só queríamos os cavalos… emprestados.
O sorriso do velho homem desapareceu no instante seguinte e, por um bom tempo, ele ficou observando Rod e Layla como se pudesse descobrir algo através do olhar. Rod começou a antever o pior, entretanto, em seguida, os olhos do cavalariço se estreitaram, com o velho homem abrindo outro sorriso, que de imediato desagradou a Rod. De repente o cavalariço não parecia tão velho como há pouco. Sua feição agora era de felicidade, mas, ao mesmo tempo, tinha uma sombra que lhe preenchia o semblante. Era como se o velho homem tivesse encontrado uma grande quantidade de ouro nas mãos de ladrões.
– Posso até emprestá um cavalinho meu pro cê ajudá o seu amigo, mais tem uma pequeninha condição já que qué minha ajuda.
Rod relanceou Layla outra vez. Não estava gostando nada daquilo.
– Qual? – arriscou ele.
– Ela… – O cavalariço brandiu o porrete na direção de Layla. – Ela fica aqui comigo e faz uns favores pra mim, até ocê vortá.
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Ao longo de toda a vida, ela desejou percorrer este caminho.
Ainda assim, seu coração pareceu saltar do peito, quando a ladeira que levava ao Palácio Elevado acentuou-se numa curva, e Lóriel precisou controlar a montaria. Agora era definitivo e ao mesmo tempo desesperador. Sua jornada, por mais que quisesse o contrário, não tinha mais volta.
Não há nada a temer, menina. Não há nada a temer.
Lóriel nascera em um lugar muito diferente daquele e às vezes pouco se recordava de sua infância. As poucas lembranças não eram boas, ou melhor, eram horríveis, embora guardasse o convívio com os pais em um lugar muito especial do coração. Era esse amor, inclusive, que a mantinha firme naquele perigoso trajeto. Mas o que Lóriel via à frente do Palácio Elevado, não sabia a razão, trazia-lhe as memórias desagradáveis desse tempo, em vez de outras que ela preferia diante daquela arriscada posição. Afinal, Lóriel não era mais uma menina. Agora era uma mulher. Uma bela mulher, para dizer a verdade, de longos cabelos dourados e olhos que cintilavam em verde mel, com muito mais coragem e conhecimento do que quando cometera a loucura de fugir de casa. Parte de seus temores continuava a existir, isso ela não podia negar, mesmo após se tornar uma iniciada das manipulações místicas.
Eu não sou como eles. Eu sou melhor do que eles.
Lóriel repetia para si mesma à medida que sua montaria avançava, mas o nervosismo era cada vez maior. Os pensamentos giravam, com os olhos buscando refúgio no Palácio Elevado, talvez o mais belo que já vira, cujas histórias por trás daquele imponente recinto, ela infelizmente conhecia bem.
É aqui que a minha jornada se inicia.
As paredes do palácio eram de pedras cinzentas, com torres nos cantos que se projetavam aos céus, como fossem feitas para adornar o horizonte. Estátuas de reis e guerreiros lendários enfeitavam os pátios e os jardins laterais, e majestosos pilares contornavam o palácio sustentando sua intrincada cúpula. Lóriel ouvira certa vez que aquele palácio fora construído durante o período das guerras mais sangrentas que Soberannia travou, como aviso mudo de valentia contra os inimigos. E de fato fora um grande aviso, pois, até hoje, o suntuoso local era visitado por lordes de todo o Império.
Mas, naquele dia, Lóriel era muito mais do que uma mera visitante.
Para o desespero de todos eles, minha jornada só está começando aqui.
Dizia-se que o interior do palácio era repleto de salões, salas ritualísticas e uma infinidade de corredores que o faziam se assemelhar a um imenso labirinto. Lóriel sempre imaginou se tratar de um lugar que abrigava incontáveis mistérios, e um dia ela até desejou desvendar todos os quais sua mente criara. Hoje, porém, Lóriel se via cercada por outros tipos de mistérios, bem mais perigosos e mortais, e disso ela não podia se esquecer. Afinal, sua jornada não podia ser interrompida.
Sua vida dependia daquela missão.
Entretanto, nem nos mais temerosos pensamentos, Lóriel acreditava que fosse se deparar com o Senhor Grão-General de Soberannia, justo ali, naquele momento, naquele lugar. À frente do pequeno comboio que os seguia, os galopes dos cavalos dela, do nobre conselheiro Amirr e da Regente Évelyn ressoavam na subida, enquanto no alto, o Senhor Grão-General se mantinha rígido sobre a montaria, diante de um poderoso batalhão de cavaleiros.
Nem bem haviam se aproximado o bastante, e Amirr e a Regente Évelyn já frearam a montaria.
Lóriel também parou. Não entendia a razão, mas se sentia um pouco estranha.
– Viemos falar com ele, ilustre Grão-General. – A Regente de Essência foi logo anunciando. Há mais de vinte anos que a Senhora Évelyn era regente de Essência. Contudo, nos últimos dias, em vez da consagrada diplomacia essena, notava-se nela uma preferência por diálogos curtos, quase todos sem rodeios. Por vezes, costumava a falar o idioma moderno num sotaque esforçado, mesclando-o com muitas palavras em idioma antigo que nem sempre Lóriel conseguia compreender.
– Não é um bom dia para visitas – O Senhor Grão-General ironizou num tom gelado. – Soberania se prepara…
– Para os raios essa maldita festa – cortou-o Amirr. – Exijo vê-lo agora.
A expressão do Senhor Grão-General escureceu de um instante para outro. Ele era um homem duro, cujo olhar cinzento exalava uma austeridade forjada há anos, e que fazia as personalidades mais poderosas do mundo temê-lo com todas as forças. Embora adorasse ver aquela fúria cega no rosto do maldito Grão-General, aquele jogo dava arrepios em Lóriel. Attad é o nosso mais perigoso inimigo, o aviso de seu pai martelava nos pensamentos. Jamais ouse desafiá-lo.
– Deviam saber que não são bem-vindos aqui – as palavras do Senhor Grão-General já soavam inflamadas. – E sem a minha permissão, não vão a lugar nenhum.
A Regente Évelyn a princípio lançou um olhar feroz sobre Amirr, mas o nobre se manteve intacto como pedra. Diferente de Lóriel, nada parecia capaz de intimidá-lo nos últimos dias. A Regente então avançou para perto do Senhor Grão-General.
– Não creio que conseguirá recorrer aos seus preciosos dons – murmurou Amirr para Lóriel. – Dificilmente passaremos daqui.
Lóriel arrumou a alça da bolsa de mantimentos que trazia consigo. O nervosismo fazia suas mãos suarem.
– Alguma sugestão, meu caro nobre? Preciso encontrar Lorde Éveru ainda naqueles calabouços. Não terei outra chance com aquele desgraçado, sabe bem disso.
– Minha sugestão, cara herdeira, é que comece deixando essa bolsa quieta!
A rispidez na resposta de Amirr trouxe uma ira repentina a Lóriel. Ela o fitou, não acreditando na audácia do nobre, e depois dirigiu o olhar para o Senhor Grão-General. Agarrando-se ao amuleto que pendia do pescoço, Lóriel percebeu tarde demais que o maldito já a observava com olhos que ardiam em brasa.
Minha jornada não pode acabar aqui.
A bem da verdade, sua jornada havia começado dias atrás, no Concílio.
Naquela ocasião, depois de um interminável percurso à Cidade das Torres, uma guerreira essena os havia conduzido pelos corredores estreitos do subsolo do Palácio Secreto, até uma apertada sala onde o Concílio acontecia. Aquela era a primeira vez que Lóriel se aventurava por um território hostil naquela condição mais frágil, e por pouco não fora a última também. E justo na companhia do detestável Senhor Grão-General de Soberannia.
– Ilustre Grão-General Attad… iniciada Lóriel… escolham um lugar e sentem-se! Desta vez não teremos distinção de lados. O Concílio já começou. – É assim, sem qualquer cerimônia, que a Regente Évelyn nos recebe. Ela se senta à cabeceira da robusta mesa retangular, ladeada à direita por Amirr e um pouco afastado, à esquerda, por Lorde Malgro. Este último, para a minha surpresa, ostenta uma feição amarrada, além de seu típico capuz de cor escura.
Então, como o Senhor Grão-General teima em entrar na sala, eu lhe dou um empurrão nas costas e entro. Não aguento mais a aflição dos últimos tempos e nem as ameaças que venho recebendo de meu pai. As ordens dele eram claras, e até então eu não pretendia falhar. Faça como Amirr diz e ache o punhal e aquele que pode manipulá-lo, eu me recordo com muito temor de sua ordem. Afinal, isso pode ser a nossa última esperança para nos livrar do julgamento dos Deuses.
Enquanto contorno a mesa, porém, um sufocante aroma seca a minha garganta. Minha vista em seguida começa a arder, o coração a acelerar como fosse explodir. De imediato, corro os olhos pelas paredes encardidas do recinto.
Não acho uma abertura sequer.
Sentando-me à esquerda da Regente Évelyn, exalo o ar, num sopro forte e prolongado, e giro a cabeça sobre o ombro para avaliar em detalhes aquele ambiente pavoroso cheirando a mofo. Contudo, minha atenção logo é sugada para aquela coisa maligna, no canto atrás de mim. Coberto por um espesso pano vermelho, a coisa repousa como um artefato secreto, sobre um imponente pedestal.
– Algo lhe incomoda, iniciada? – a Regente Évelyn me pergunta.
– Não… nada – eu respondo prontamente. Mesmo assim, a mulher de espesso vestido marrom e olhos e cabelos negros como o breu arqueia os lábios num educado sorriso da mais pura desconfiança. Entretanto, tão logo o Senhor Grão-General de Soberannia cai na cadeira entre mim e Lorde Malgro, a Regente endurece as feições e num gesto brusco se volta para o outro lado.
Meu pai havia me alertado do encanto e do perigo que aquela mulher emanava, mas ele sempre se referia a ela como uma personalidade fria e cautelosa e não impulsiva como demonstrava. E, enquanto a Regente troca palavras ríspidas com a guerreira essena que havia me escoltado juntamente com o Senhor Grão-General até ali, eu me pego querendo saber que tipo de personalidade a Regente possui de fato.
– Não acha que Éveru devia estar aqui conosco, Attad? – dispara Amirr do outro lado da mesa. – Da última vez, você jurou que ele seria mandado o mais breve para a Cidade Imperial.
– Logo ele estará conosco, Lorde Amirr – O Senhor Grão-General limita-se a responder.
– Eu também soube do incidente com o seu filho e o Conselheiro-Mestre de Soberannia – emenda Amirr, agora com um sorrisinho jocoso. – Confesso que fiquei surpreso com os relatos que me chegaram. Com toda essa marra, Attad, seu filho nunca fará por merecer um título digno de nossa tradição. Imagino a vergonha que Endy sentiria caso estivesse testemunhando tudo isso.
– Preze pelos seus deveres, Lorde Amirr – o Senhor Grão-General devolve, enquanto aperta aquele lenço branco horroroso amarrado ao punho. – Do meu filho, cuido eu.
O Senhor Grão-General e Amirr se entreolham feito inimigos mortais, e por um instante acredito que os dois irão se atracar. Sei de todo o mal que um fizera ao outro, mas é difícil entender tanto rancor em personalidades que um dia chegaram a se considerar irmãos.
– Agradeço a presença de todos os Magníficos aqui, hoje – a Regente Évelyn se apressa numa gélida cortesia. – E lamento pelo luto que se abateu na Casa de Edmurr – ela então me dirigi uma expressão indiferente, e mais uma vez me vejo forçada a sorrir. – Infelizmente, a escuridão vinda do Leste esvaziou nosso encontro e parece criar empecilhos para que todos sustentem um humor adequado. No entanto, Lorde Amirr nos traz notícias preocupantes do Norte. Só peço que o ouçam, antes de tratarmos dos demais assuntos.
A Regente deita um olhar enigmático sobre o Senhor Grão-General, talvez de repreensão ou medo de alguma reação mais austera dele, mas ele não esboça um movimento sequer. Ainda assim, eu consigo notar um certo incômodo no olhar cinzento daquele homem. Desde o desaparecimento de sua esposa que o Senhor Grão-General vestia aquelas pesadas indumentárias pretas e emanava um mau humor que ninguém mais suportava. Diziam que ele havia ficado assim apenas depois do sumiço da esposa, mas, para mim, aquele homem sempre se mostrou maldoso e arrogante, e eu o detesto por tudo isso e muito mais. Apesar disso, sinto arrepios só de imaginar o que aquele homem faria caso descobrisse que muitos naquele Concílio tinham parte no desaparecimento de sua esposa.
Então, arrastando a cadeira para trás, Amirr povoa o recinto com um ruído cortante ao se levantar.
– Notícias preocupantes… – As mãos dele caem sobre a mesa num baque. – Creio que seja bem mais que isso que vos trago.
E, enquanto fala, Amirr demonstra grande elegância. Ele sustenta uma altivez atípica, a voz grave, o peito inflado como o de um falcão. Assim como sempre, protege-se do frio num suntuoso traje rubro de escamas e deixa solto o longo cabelo loiro. Como odeio nobres com cabelos compridos.
– Ainda que sem o regresso dos nossos emissários – emenda Amirr –, e ainda que Éveru esteja enfrentando contratempos muito além do que esse Concílio deveria tolerar, como a maioria aqui sabe, parti em missão pelos territórios além das fronteiras de Resplendorr. Lá, fui à busca de respostas sobre esse estranho sol de sombras, e como ele pode ameaçar a paz que prevalece no mundo. E… não me alegro em dizer que obtive estarrecedora informação sobre os Povos-Sem-Rei.
– Não nos trouxe aqui para falar dos Povos-Sem-Rei, trouxe? – Lorde Malgro esbraveja e então escarra no chão. – Vim até essa maldita cidade atrás de notícias dos adormecidos e da guerra. Nada mais!
– E nós as temos, Lorde Malgro – Amirr rebate educadamente.
– Então diga logo, Amirr – mesmo assim, Lorde Malgro mantém o tom possesso. – E diga também se é verdade que o Cerco sobre as Ruínas foi tomado dos Acalantis. E esses tais farsantes? Quem são eles afinal? E a confusão no Templo do Altar? O Necromante…? Ele voltou?
– Contenha-se, Malgro. – O Senhor Grão-General intervém, e Lorde Malgro puxa o capuz para frente e se acomoda na cadeira, mas, nesse instante, eu desvencilho momentaneamente a atenção do embate. Pois, pensando bem, é a primeira vez que ouço referência aberta a respeito do Necromante. Por isso, quando dou novamente por mim, já havia virado a cabeça e, mais uma vez, sondado aquela coisa tenebrosa às minhas costas.
– Pois bem – Amirr continua, a voz alterada –, os Povos-Sem-Rei vêm tirando proveito dos últimos eventos. Ao que parece, estão se espalhando pelo leste de Resplendorr e em alguns territórios próximos às fronteiras com Soberannia. Temo que, a esse momento, possam estar se reunindo em grande número. Eles podem estar planejando um ataque ao Império.
– Quantos já atravessaram a Margem Estreita? – o Senhor Grão-General quer saber.
– Duzentos ou trezentos mil, pelo menos – responde Amirr.
– Impossível – o Grão-General teima.
– Vi com os mesmos olhos que o veem, Attad.
– Para os infernos com o que acha ter visto, Amirr – o Senhor Grão-General urra feito uma fera. – A visão de um qualquer que mal maneja uma espada me é tão confiável quanto às vistas de um homem cego. E mesmo que os Povos-Sem-Rei estejam atravessando a Margem Estreita, eles nunca atacariam o Império.
– Se assim acredita, ilustre Grão-General, é por que de fato é um grande tolo – a Regente Évelyn o rebate.
Então, com o princípio de um tumulto, o Senhor Grão-General tenta roubar a palavra para si. Amirr, porém, consegue falar mais alto do que todos.
– Ainda não entenderam? Não se faz necessário escolhermos um lado da mesa. O que proponho é a união de forças para sufocar essa ameaça, e Soranno e Ellian já até manifestaram concordância. Os Magníficos não podem permitir o crescimento de outro inimigo. Não agora que estamos sob ataque. Precisamos deliberar para impedir que os Povos-Sem-Rei continuem a atravessar a Margem Estreita. Além do mais, um de nós deve ser incumbido de ir à Cidade Ancestral, pois o que irei mostrar, isso sim…
– Para os raios você e essa merda de cidade, Amirr! – interrompe Lorde Malgro, antes de escarrar novamente no chão. – Alguns de nós já se atreveram por aquelas bandas e nunca mais ninguém soube do paradeiro dos infelizes. O que quero saber é a respeito dos Acalantis e dos Deuses; se entraremos em guerra ou não. Você, Amirr, só se importa com essas baboseiras, porque se veste como lorde de terras nortenhas e não como um de nós. Mas eu lhe aviso que os primeiros a sofrer com essa invasão serão os resplendorenses. Só que quando os líderes do sul clamam por ajuda, nunca podem contar com o mau cheiro arrogante daquele desgraçado do Edmurr.
Ouvir aquele ultraje é demais para mim. Eu me levanto num pulo.
– Como ousa falar assim de meu pai, seu…
– SUA NOBREZINHA… – com um soco na mesa, Lorde Malgro me corta e também se ergue – …ainda deseja dizer alguma coisa? Porque estou lhe dando TODO OUVIDO AGORA.
Fico atônita, sem reação nenhuma, sentindo-me atacada por uma violenta onda de ódio e temor. Não fora minha intenção aquele gesto e tampouco estar cercada pelas mais poderosas personalidades do mundo. Contudo, sou iniciada e não me importo com tamanho fingimento daqueles imbecis. Eu me tornei uma guerreira legítima, tenho preciosos dons e fui nomeada herdeira de Resplendorr com justiça. Eu merecia mais respeito. Sempre mereci.
– Se isso o acalma, Lorde de Fúria, quero que saiba que sim, já temos ciência do que ocorreu no Templo do Altar – a Regente Évelyn revela bruscamente. – Não sabemos muito sobre os Acalantis ou sobre os tais farsantes. Mas o Necromante… Ele retornou. Temos prova disso.
– Do que você está falando? – o Senhor Grão-General retruca. Sempre ele.
– A maldição deseja cobrir o mundo outra vez, ilustre Grão-General. É chegado o momento de nos decidir entre a guerra e a servidão. Veja com os próprios olhos o alerta que aquele demônio nos enviou. – A Regente Évelyn faz então um gesto com a cabeça, indicando o canto no qual aquela coisa coberta está.
Meu corpo fica rígido feito pedra. Eu me viro para a coisa.
Pouco depois, uma guerreira essena se dirigi até o pedestal e o descobre.
Um ronco de cadeiras se arrastando enfesta o Concílio, e eu agarro o meu amuleto, e jogo o corpo para trás, afastando-me, desviando os olhos daquela coisa tenebrosa. Ainda hoje, lembrar desse momento me dá uma sensação horrível.
– Que brincadeira é essa? – o Senhor Grão-General reage, já de pé.
A Regente Évelyn o rebate em idioma antigo, mas eu não consigo prestar muita atenção. Quando me concentro novamente, o Grão-General já está trovejando.
– Isso é um ABSURDO! – Ele então atira para longe a cadeira na qual se sentava e saca um punhal, cuja lâmina começa a brilhar. – Como permitiram uma coisa dessas? – Quando ele avança na direção do pedestal, Amirr corre, tromba em meu ombro e se põe de frente para o Senhor Grão-General.
– Não pode fazer isso, Attad.
– Saia da minha frente, Amirr.
Não sei como, mas enfim reúno coragem para encarar aquela coisa novamente. É apenas uma cabeça. Uma cabeça sem corpo, repleta de manchas escuras, numa palidez de arrepiar. É a cabeça de Eldric, do Grão-Mestre de Profecia, do único aliado de meu pai. A boca dele está roxa e violentamente amordaçada, mas os olhos ainda se movem cheios de ódio. Na testa, acentua-se um círculo impreciso, com uma temível marca ao centro, como se a pele tivesse sido queimada por ferro ardente.
Enquanto tento digerir o que vejo, uma voz cavernosa inunda minha mente.
“Ouça-me, criança, ouça as três, ouça bem tudo que vou revelar.”
Eu tapo os ouvidos com as mãos, sentindo-me muito mais estranha que antes, e curvo o corpo, mas a voz não cessa, e de repente um tumulto se consolida no Concílio, e eu não consigo acompanhar mais nada. Apenas continuo com as mãos nos ouvidos, movendo-me sabe-se lá para onde, o corpo curvado, tentando ignorar a voz que atormenta minha cabeça. Nem sequer vejo quando uma força brutal me atinge pelas costas, arremessando-me para frente.
Cambaleando, vou cair ao pé do pedestal onde a cabeça de Eldric se ergue. Nesse momento, mal consigo respirar.
“Os Deuses irão querer vingança, que as três saibam disso. Vingança! E nenhum mago e nenhuma Ordem dessa vez escapará.”
Mesmo com a cabeça latejando, eu olho para trás. Ao centro de um poderoso cerco, Amirr se debate com uma agressividade e força muito incomum para ele. Aliás, quase todas as mãos do Concílio parecem lutar para segurá-lo.
De repente, uma sombra se alça sobre mim.
– Afaste-se! – ordena o Senhor Grão-General, o punhal fortemente na mão.
“Não adianta buscar refúgio em poderes primitivos. A guerra virá assim que o Necronómicon for aberto. Segredos serão revelados. As três serão julgadas. O mundo conhecerá a devastação. Aquele que carrega mais de um sangue nas veias encontrará o seu castigo. Todos vão sofrer. Todos vão implorar pela morte. Um a um. A menos que escolham o lado certo.”
Ergo então os olhos para o maldito Grão-General, mas, depois disso, sinto uma forte dor no peito e subitamente sou abraçada pelas trevas. Sem saber como, sinto-me gelada, presa a uma escuridão que parece interminável.
Isso é incrível, eu penso sem entender aquela estranha sensação.
Vagamente me vejo atacando o Senhor Grão-General, e o vejo me agredindo também, mas não vejo o momento em que eu o desarmei. Só sei que, quando regresso a mim, ou assim imagino, já estou de pé, o cabelo desgrenhado à frente dos olhos, o poderoso punhal do Senhor Grão-General cintilando na minha mão.
– Baixe essa arma – o Grão-General exigi de mim.
– A culpa é sua, seu desgraçado – eu emano num tom possesso. – Tudo o que acontece é por SUA CULPA.
– Ela não está em si, Attad – A Regente Évelyn esbraveja.
Está errado, mago imbecil, eu penso, sem entender porque faço aquilo. Eu represento a vontade do verdadeiro Deus.
Então estico o punhal num golpe que visa cortar a garganta do Senhor Grão-General. Ele se desvia e segura o meu punho, torcendo-o, até estalar. Eu grito um som espesso, invocado de profundezas estranhas, mas a dor é tamanha que eu preciso largar o punhal. Logo depois, o Grão-General me abraça por trás, imobilizando meus braços, apertando-me com uma força descomunal. Contorcendo, eu me abaixo e escapo do feroz aperto, mas o Grão-General me agarra pelos braços, novamente duelando contra mim. Enquanto me debato, procuro pelo punhal, mas não o acho. É aí que cometo o mais grave erro de minha vida. Num acesso de fúria, cravo os dentes na mão do maldito Grão-General.
– Grrrrrr…
O homem solta um rosnado prazeroso de dor, e um sabor ferroso de sangue logo se propaga pela minha boca. Demorou dias para eu compreender o perigo que corri, mas, nesse momento, continuo a comprimir os dentes, saboreando da carne do Senhor Grão-General.
Já sentia a dureza dos ossos do maldito quando um violento golpe atinge minha nuca.
Sem forças para agarrar-me a algo, eu me estatelo no chão.
“Junte-se a nós, minha criança, é a única salvação. Junte-se a mim, e as três serão salvas. E serão livres de novo.”
Pouco depois, o Senhor Grão-General apanha o punhal do chão. E, assim que ele enterra a lâmina pela terceira vez na cabeça de Eldric, a voz em minha mente se silencia, o meu corpo se relaxando como se uma força de imenso poder tivesse me abandonado.
– Essa guerra não pode acontecer – o Senhor Grão-General anuncia ao se virar. – Eu mesmo irei à Cidade Ancestral.
Meio sem jeito, eu o olho.
A essa altura, ele já me encara, com olhos que ardem em brasa.
Naquele dia, Lóriel não teve medo da reação daquele homem estúpido e jamais imaginou que um dia iria ter. Embora se intrigasse com a insanidade que fizera e com o mal que havia encarnado nela, Lóriel tinha apreciado aquela sensação sombria de poder. Mas hoje, ao regressar ao presente, seu estômago se contorceu assim que a Regente Évelyn fez menção à mão enfaixada do Senhor Grão-General.
– O ferimento é na mesma que foi mordida?
O Senhor Grão-General confirmou com a cabeça.
– Os vermes hão de me curar novamente – disse ele, movendo-se de um lado para outro com a montaria. – Vocês não deviam ter vindo aqui.
Então, a Regente Évelyn voltou a falar com o Senhor Grão-General em idioma antigo, quase inaudível, apontando insistentemente para o horizonte nebuloso. A sombra que crescia no céu nunca foi tão nítida a Lóriel quanto dali, do alto da Fortaleza Montanhosa. Em seguida, Amirr lançou um olhar nervoso para Lóriel e, numa esticada, cavalgou até se juntar ao Senhor Grão-General e a Regente Évelyn. Apoiando a bolsa na perna, Lóriel o seguiu.
– Os tremores estão um tanto mais frequentes ou é impressão minha? – a voz de Amirr não escondia um leve toque de ironia.
O Senhor Grão-General não respondeu. Era esperto demais para cair em malícias como aquela.
– O que aconteceu na Cidade das Torres não se compara ao que conhecemos agora, Attad – acrescentou Amirr. – Os relatos que chegam do Leste são perturbadores. Há uma agitação que desconhecemos por completo, e Lúciann pode ter parte em tudo. Precisamos urgentemente cuidar dessas dúvidas. Só Éveru pode esclarecer.
– Não se refere às tais aparições do Necromante, é disso que está falando?
Nem Amirr e nem a Regente Évelyn se manifestaram, e Lóriel se viu em dúvida de como agir. Sentia-se cercada por forças perigosas, ameaçada, mas, mesmo assim, precisava encontrar Lorde Éveru enquanto o cárcere ainda o consumia. Precisava se certificar que sua vida não estaria mais em risco. A essa altura, a ideia de fugir para a segurança de Resplendorr atiçava seus pensamentos, mas esta era uma possibilidade que Lóriel tinha de evitar a qualquer custo.
– Você também presenciou a dominação – disse a Regente Évelyn ao Senhor Grão-General. – Também o ouviu. Sabe bem do que aquele demônio é capaz. Sabe que ele vem atrás de nós.
– Não haverá guerra, Evelyn. – Depois de responder, o Senhor Grão-General ficou um bom tempo imóvel até virar o rosto, e Lóriel enfim sentiu uma onda confiante pelo corpo. Será que finalmente haviam achado um ponto fraco naquele maldito?
– Lorde Éveru precisa dizer o que é isso. – Lóriel enfiou rapidamente a mão dentro da bolsa, retirou um papel enrolado dali e o estendeu para o Senhor Grão-General. Ele, contudo, deu uma olhadela de canto e, como estava, permaneceu. Lóriel então se voltou para Amirr. O nobre balançou a cabeça como se ela estivesse fazendo tudo errado.
– Isso foi encontrado junto a carcaça de um traidor, Attad – disse Amirr, ao tomar com um gesto grosseiro o papel da mão de Lóriel. – Traz uma inscrição que posso jurar ser idêntica àquele símbolo que marcaram na testa de Eldric.
O olhar do Senhor Grão-General se tornou impaciente. Embora ele fingisse o contrário, a Lóriel era nítido um forte interesse dele pelo papel na mão de Amirr.
– Também recebemos informações que dão conta de ataques aos Fortes de Soberannia, Attad – Amirr emendou rápido feito uma raposa. – O que pode nos falar?
O Senhor Grão-General pareceu hesitante e confuso ao suspirar.
– Lokke mandou relatos de um confronto, nos vilarejos à margem das fronteiras ao noroeste, mas não detalhou de quem partiu a audácia. Os Povos-Sem-Rei parecem ter se infiltrado pela região, mas desde então foi tudo que me chegou. – Pela primeira vez, a voz daquele infeliz soava calma. Até os olhos dele tinham perdido um pouco da frieza. – Ainda não estou certo se esse símbolo tem alguma relação com a mensagem que recebemos. Existe apenas um meio de descobrir. Mas estou enfrentando sérios problemas com minha partida.
Não, pensou Lóriel, não há apenas um meio de descobrir. E eles fingem não saber disso. Como podem ser tão cínicos?
– Attad… – Amirr esperou pela atenção do Grão-General para continuar –, eu queria que fosse diferente, mas não é. Fomos testemunhas do que aconteceu com Eldric. Sabemos o que Lúciann vinha tramando, mas não sabemos o que eles descobriram ao certo. Nem sequer temos ideia do que isso aqui significa. – Amirr agitou o papel num gesto de irritação forçada. – Você tem a sua incumbência, e eu como um bom servo a respeito. Mas nós temos a nossa também. Estamos todos exaustos e famintos. Viemos determinadamente de longe. Insisto, em nome… de uma antiga amizade. Deixe-nos falar com Éveru. Após isso, cada um de nós partirá para o seu dever.
O Senhor Grão-General fechou a cara por um instante, como quisesse parecer imune àquele pedido. Entretanto, logo em seguida deu-lhes as costas e passou a tratar com os guerreiros de seu batalhão. Lóriel, Amirr e a Regente Évelyn recuaram até o comboio de cavaleiros que os acompanhava, e os três esperaram enquanto o Senhor Grão-General cavalgava de um lado para outro, esbravejando ordens como um vigoroso comandante prestes a guerrear. Lóriel não tinha bons pressentimentos com aquilo.
Pouco depois, o Senhor Grão-General se reaproximou dos três.
– Venham comigo – ordenou ele, voltando a fulminar Lóriel com aquele mesmo olhar faiscante do Concílio. – Mas ELA… não vai.
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Após escoltar Évelyn e Amirr aos calabouços da Fortaleza Montanhosa, Attad se apressou em guiá-los de volta ao Palácio Elevado. A mão pulsava, a dor agora irradiando-se pelo punho como fosse uma serpente criando tentáculos. Ao menos a esperança apresentava outra face. Por bem ou mal, Attad vislumbrava uma nova chance para convencer Dáriuss, de uma vez por todas, a sitiar Soberannia com guerreiros em sã consciência, em vez de receber bêbados e desordeiros em uma festividade sem qualquer sentido para aqueles tempos. Aquilo ainda não era exatamente o ideal, mas, talvez somente assim, Attad poderia partir, para a sua mais importante missão, com a consciência um pouco mais amena.
Adentrando o palácio, no entanto, seu humor logo piorou. Attad teve de voltar a encarar a recém-constituída herdeira de Resplendorr. Tateando o amuleto que pendia do pescoço, Lóriel observava justamente a estátua que lembrava Attad. Ninguém sabia de onde aquela maldita estátua tinha vindo, nem quem se atrevera a esculpi-la, mas, só por se parecer consigo, Attad a odiava de todo coração.
A passos firmes, encaminhou-se até Lóriel.
– Essa estátua realmente lembra muito o Senhor Grão-General – disse-lhe Lóriel, sem se dignar a olhá-lo.
Attad respirou fundo. Desde o Concílio que aquela menina o intrigava na verdade. Attad não se recordava de ela ser tão bonita como era agora, nem tão insuportável como parecia se orgulhar em ser. Seu jeito lembrava um pouco o de Edmurr. Era vaidosa com os trajes de guerra, sempre vestida com couro escamoso bem delineado ao corpo e em belos tons de marrom. O cabelo dourado estava sempre penteado e perfumado, e a postura, exuberante como a de uma mulher de grande dom. Mesmo assim, havia algo intrigante naquela menina que o enchia de suspeitas. O modo como ela e Amirr se entreolhavam também revelava algo além de uma mera cumplicidade por um mesmo objetivo, e Attad já não estava certo de que forma devia enxergar aquela união.
É mais que certo que esses dois estão em conluio.
Ou talvez a perda do irmão tivesse deixado alguma marca dentro de Lóriel, algum vazio que Amirr preenchia, e Attad apenas tivesse julgando mal.
– Mas vendo melhor – continuou Lóriel –, há um lenço em cada punho, não apenas o da sua mão esquerda. A armadura também parece bem mais intrincada. Uma pena, porque as lágrimas caindo do olho a torna uma relíquia muito menos desagradável do que o próprio homenageado.
De repente, sua vontade foi para além de um desejo de enxotar aquela menina. Attad nunca tinha admitido a ninguém que admirava o pai de Lóriel e torcia para que ele conseguisse encontrar forças para superar a tristeza pela perda do filho. Para ser honesto, Attad compreendia bem da dor que Edmurr sentia, mas acreditava que não era de bom gosto demonstrar apreço por homens com juízo contrários aos seus. Por Lóriel, no entanto, Attad ainda não sabia o motivo, mas não conseguia nutrir nada mais que total aversão.
Olhou então para Amirr. Temia compreender a razão que fazia o outro homem proteger tanto aquela menina. De todo modo, não havia tempo a perder.
– Acompanhem-me! – Attad se virou, mas, antes que pudesse retomar o seu caminho, foi novamente alvejado por Lóriel.
– E quanto a mim, Senhor Grão-General? Devo permanecer na companhia ridícula de sua estátua?
Amirr a repreendeu, e Attad cerrou os punhos, evitando no limite de suas forças dar vida àquela fúria. Por um momento, ponderou se devia ensinar aquela menina a razão de tantos homens temer os calabouços da Fortaleza Montanhosa. Especialmente pelo que havia descoberto há pouco naqueles mesmos calabouços, Attad tinha de evitar conflitos com Amirr e estava fazendo grande esforço para isso. Acontecimentos de severa gravidade eclodiam pelo mundo, o tempo perigosamente se estreitando. Era chegado o momento de direcionar todo o seu empenho na mais importante missão que já se encarregou. Precisava encontrar Rodden o mais rápido possível, e precisava cuidar dos preparativos de sua partida da Fortaleza Montanhosa o quanto antes. Apesar da energia repulsiva daquela menina, não valia a pena desnortear-se com rivalidades mal compreendidas.
– Se me dirigir a palavra mais uma vez, juro que me lembrarei de tudo o que seu pai já fez a mim. – Perante o silêncio embargado de Lóriel, Attad pôs-se a caminho do Salão da Glória.
Instantes despois, ao cruzar o saguão de entrada do palácio, Attad se deparou com o general Kregg, o que fez seu espírito se alegrar. Rodden havia sido localizado, era mais que tempo de acontecer. No entanto, quando colheu as vagas informações que haviam chegado ao general, Attad se desesperou. Meu filho agrediu um cavalariço?! Que diabos estava acontecendo com Rodden? Mesmo assim, na companhia indesejada dos três estrangeiros, venceu o labirinto de corredores e chegou ao Salão da Glória.
Apressadamente, atravessou-o de uma ponta a outra, indo direto ao encontro do Governador. Sentado em seu trono, Dáriuss ostentava um olhar enigmático, com um soldado carrancudo da guarda pessoal na retaguarda, com tantos outros empunhando bestas carregadas margeando o salão. Attad nunca se vira cercado por tantos homens desconhecidos como nesse momento. Aquela cena o fez se arrepender do que estava prestes a realizar.
– Nunca imaginei que o meu Grão-General um dia traria esta essena de volta à minha presença – disparou Dáriuss. – Achei que fosse o bastante conhecer o ódio que sinto em ser obrigado a aceitá-la como Regente de Essência.
– Os visitantes teimam em lhe falar em nome do Império, Soberano – Attad se defendeu e olhou para Évelyn, num gesto permissivo para ela se aproximar do Governador.
Com uma passada pouco sutil, Évelyn se colocou diante de Dáriuss. Talvez fosse apenas impressão, mas desde o Concílio que Attad tinha percebido uma postura atípica em Évelyn. Ela às vezes parecia um tanto enfurecida, às vezes, precipitada, sem uma costumeira astúcia. Attad desconfiava que ela devesse enfrentar severos problemas em seu governo, mas este era um assunto do qual nem queria saber.
– Nobre Soberano… – disse ela em anunnako, ao se inclinar diante de Dáriuss –, o povo de Essência lamenta o perturbador ocorrido com sua esposa Agnis. Peço que aceite minhas humildes condolências e, se possível, atenda nossa demanda…
– Estamos a caminho das Terras Proibidas e precisamos de vossa permissão para atravessar o Corredor da Névoa, Soberano – cortou-a Amirr em idioma contemporâneo, num tom incisivo. – Em face, adianto que estamos cientes do tributo e não nos opomos a moeda alguma exigida.
Évelyn se pôs de pé, virando um olhar de revolta para Amirr, que pareceu não se intimidar. Dáriuss, por sua vez, empertigou-se. E começou a bater os pesados anéis na lateral do trono, enfestando o salão com um ruído irritante no mesmo tempo em que murmurava para o soldado em sua retaguarda. O homem carrancudo logo em seguida saiu em disparada do salão, e só então Dáriuss cessou o insuportável tilintar. Aquilo não era um bom sinal.
– Confesso que estou surpreso – disse Dáriuss com frieza. – Por que desejam ir às Terras Proibidas justamente por Soberannia?
– Creio que o Soberano deve estar a par dos últimos eventos no norte de Resplendorr, estou certo? – rebateu Amirr, provavelmente esperando pela concordância do Governador, que não veio. Havia apenas dois caminhos seguros para as Terras Proibidas; um pelo norte de Resplendorr e outro pelo leste de Soberannia. Com o norte de Resplendorr enfrentando uma invasão dos Povos-Sem-Rei, restava o caminho mais caro e mais complicado de se obter permissão. O caminho controlado por Dáriuss.
– Ainda assim, Lorde Amirr, não consigo imaginar o que de útil uma Regente, uma herdeira nomeada pelo próprio Imperador e um nobre resplendorês fariam num território repleto de homens primitivos e forças malignas. Até onde sei, os draconianos povoam boa parte daquelas terras, e eles não costumam receber bem os visitantes. Estão certos aonde desejam ir, caro nobre?
Raros eram os homens do Império que conheciam as Terras Proibidas. E ainda mais raros eram os que tinham sobrevivido a todos os seus perigos. Attad sobrevivera por pouco, muito pouco. Sob a guarda geniosa e mortal daquele território hostil, diversos segredos de tempos remotos adormeciam à espera do dia em que seriam despertados para perseguir e matar cada homem, mulher ou criança do mundo. Apesar de tudo, o poder sombrio que lá habitava por muito tempo havia instigado a curiosidade humana e toda a sua tolice. Mas hoje a realidade era outra, e Dáriuss sabia bem disso. Os perigos tinham se tornado ainda maiores com a presença dos draconianos pela região, e o Governador por certo estava sentindo o aroma mentiroso realçando-se em cada palavra que lhe dirigiam. O problema é que contra aquilo Attad não podia fazer praticamente nada. E para o seu desespero, sua chance de êxito se reduzia bastante também.
– Um espião revelou que Lúciann se abriga sob a proteção do Rei-Sem-Rosto – explicou Amirr. – Vamos atrás daquele assassino por determinação do Governador Edmurr e com a justa permissão do Imperador. Estamos cientes dos perigos que corremos. Até por isso, antes buscamos o apoio do Soberano para enfrentar outro problema, parecido com o qual o próprio Soberano bem observou. Os Povos-Sem-Rei. E pedimos a Regente Évelyn que gentilmente intercedesse por esse nosso pedido junto ao Soberano.
Attad segurou o lenço preso ao punho. Não estava gostando do rumo daquela conversa.
Foi então que uma súbita gritaria vindo de fora do salão o forçou a se virar. Aos poucos, as vozes foram crescendo, e Attad as reconhecendo naquele duelo incessante, em meio a uma chuva infernal de latidos.
Au, au, au…
Isso não pode estar acontecendo!
E não demorou muito para Rodden surgir na entrada do salão, ao lado daquele maldito cachorro, correndo feito um louco na direção de Attad. Para piorar, Kregg materializou-se em seguida, arrastando outro rapaz com dificuldade. Os três, junto com o cão, foram direto em Attad.
– Que diabos tem na cabeça, general?
– Nós o capturamos, Senhor.
Au, au, au…
Attad olhou para Rodden. Seu filho parecia um pouco pálido, e Attad já não sabia se sentia mais raiva ou alívio.
– Sim, mas quem ordenou que o trouxesse aqui? – Au, au, au… O cão não parava de latir, e cada latido parecia uma martelada no cérebro de Attad. – Leve-os daqui, agora!
– Ele que invadiu o salão, Senhor – disse Kregg, referindo-se a Rodden com um meneio de cabeça. – Insiste que precisa lhe falar.
Au, au, au…
Attad lançou a Rodden um olhar repreensivo, desejando ter ao alcance um chicote de espessas cordas. Por um breve instante, lembrou-se dos dias em que Rodden era apenas um menino, seguindo seus passos, olhando-o com admiração. Agora, no entanto, esse mesmo menino o olhava com uma sombra de desafio no rosto. Attad não entendia como tudo podia ter mudado daquele jeito. O que foi que eu fiz para você, meu filho? O que foi que eu fiz?
– Preciso lhe falar, pai – disse Rodden, a voz um tanto assustada. – É urgente.
Au, au, au…
– Creio que esse seja o seu filho com Endy, Grão-General Attad. – Em alto e bom tom, Amirr destilou toda a sua elegância venenosa. – Acho que ainda não o conhecia.
Au, au, au…
Attad fechou as mãos e lutou consigo mesmo para não encarar o rival. Então, ao perceber que Rodden não carregava a própria espada, agarrou o cão pela coleira e pelo rabo, de modo que o animal não conseguisse mordê-lo, girou-o no ar e o arremessou em direção à saída. Seu movimento, no entanto, foi mais forte do que pretendia, e, ao atingir o chão, o animal grunhiu, fazendo Attad engolir em seco. Pouco depois, o cão rosnou para o guarda que tentava apanhá-lo e, mancando, foi-se do salão.
– Devo levá-los à sala dos julgamentos, Senhor? – perguntou-lhe Kregg.
– Sala de julgamentos…? – Attad se virou de imediato para o general.
– Eles não apenas foram pegos agredindo o cavalariço – justificou Kregg –, como o homem os acusa de tentarem roubar os seus cavalos.
De repente Attad não sabia mais em que pensar. Seu único filho, herdeiro do mais poderoso fronte de Soberannia, a última memória viva de sua esposa tivera a petulância de agredir um cavalariço para roubar… cavalos… míseros cavalos?! Que mais poderia lhe acontecer naquele dia?
Amirr riu.
– Parece que tem dado pouca atenção ao rapaz, não acha, Grão-General? Ah, se Endy ainda estivesse entre nós…
Attad se segurou como nunca para não revidar à afronta de Amirr. Com um aceno de cabeça, despachou Kregg do salão, e, tão logo o general tomou o caminho da saída, avançou no braço do filho e no colarinho do outro rapaz, voltando-se em seguida para Dáriuss. Era-lhe duro até falar.
– Pai, você precisa me ouvir – rangeu Rodden.
– Cale-se, Rodden! – Attad sacolejou o filho, a ferida na mão agora ardendo em vergonha. – Sua… permissão, Soberano… para tratar desta rebeldia.
Amirr tornou a rir.
– Soberano, não podemos esperar pelas explicações dos nossos pequenos contraventores. A cada dia os Povos-Sem-Rei se aproveitam dos nossos problemas. Resplendorr vem humildemente solicitar reforços e suprimentos para enfrentar a invasão dessa raça disforme. E como Lúciann se esconde entre as ruínas de uma cidade primitiva, queremos surpreendê-lo, para enfim fazer a justiça de Edmurr alcançá-lo. Tenho certeza que o Soberano também sente enorme repulsa pelo mal imperdoável que ele causou a casa de um governante do Império.
– Ele está certo, Soberano – intrometeu-se Rodden, de repente se agitando. – Soberannia não deve se ausentar dos assuntos que ferem a justiça do Império.
O desejo pelo chicote agigantou-se em Attad. Dez chibatadas de um rígido chicote de pontas metálicas talvez fossem insuficientes. Mesmo sem obter a devida permissão, começou a arrastar o filho e o outro rapaz para fora do salão.
Não perde por esperar, Rodden. Não perde por esperar!
Dedos macios, no entanto, caíram sobre seu ombro logo em seguida e seguraram-no com força, emanando uma frieza que atravessava sua armadura, carne e sangue. Attad parou no mesmo instante.
– Assim perderá o que mais de magnífico está reservado para o fim – segredou-lhe Évelyn em anunnako, ao encarar Attad. – Garanto que o Governador irá cancelar as festividades, e será monumental para todos nós.
Amirr então alteou a voz.
– Parece que nosso jovem amigo tem mais sanidade do que muitos aqui, Soberano. – Ele alargou os braços, como que incluindo Rodden na conversa, mas Attad não conseguiu dar a devida atenção. Évelyn a havia roubado por inteiro. – Jamais podemos esquecer o aviso que os Deuses nos enviam. Aquele sol de sombras no horizonte é inegavelmente o prenúncio de um mal que não me atrevo a denominar.
– Você devia me ouvir, pai – sussurrou-lhe Rodden.
Novamente Attad sacudiu o braço do filho, os olhos ainda cravados em Évelyn.
– Essas palavras recendem à mentira – descarregou Dáriuss em tom possesso. – Pois bem, Lorde Amirr… Se buscam o meu apoio, digam o que Lúciann faz de tão importante nos escombros de lugar amaldiçoado. O que o seu informante lhe revelou e você e esta essena tentam esconder de mim?
Nesse instante, Évelyn sorriu ao se desviar de Attad.
– Não bastasse Alerr, Soberano – respondeu Amirr –, Lúciann também matou aquele que o Governador Edmurr considerava como seu irmão. Agora, somente o sangue daquele assassino pode devolver a justiça à Casa de Edmurr.
Tudo rodopiava na cabeça de Attad. Ele estava totalmente intrigado com a revelação em Évelyn e ao mesmo tempo perguntava a si mesmo onde Amirr havia ganhado tanta altivez. Que diabos estava acontecendo ali? Seria tudo uma farsa ou o problema era apenas Évelyn?
Attad ainda procurava uma resposta quando o soldado retornou ao posto, na retaguarda de Dáriuss. Logo em seguida, a voz sisuda do Conselheiro-Mestre Elmon espantou suas preocupações.
– Por que não mandou que me chamassem, ilustre Grão-General? – Com um ar desafiador, Elmon se firmou ao lado de Attad. – É com grande honra que os sábios também receberiam tão importantes pessoas, embora haja quem devesse se apressar a tratar de certas rebeldias. – Olhou na direção de Rodden e balançou a cabeça. – Um esfíngico ladrão… O que os sábios nos diriam?
Attad expulsou o ar de si. Que mais poderia acontecer naquele dia?
– Bem, logo mais teremos o início de uma grande festividade em Soberannia – anunciou Dáriuss, levantando-se do trono. – E como não vejo nenhum convidado à minha frente, não posso perder mais tempo com tantas… – Suas palavras morreram, assim que ele direcionou o olhar para Évelyn. – Elmon, conduza os visitantes imediatamente aos portões de minha cidade. Em breve, o indesejado vazio desse salão dará espaço ao calor dos convidados, e eu…
Évelyn deu um passo à frente, silenciando o Governador.
Arrastando Rodden e o outro rapaz, Attad também avançou.
– O meu propósito aqui é especial, Soberano – ela disse novamente em anunnako. – Faz-se necessário a formação de duas missões, e estou perfeitamente certa que o Soberano apreciaria colaborar em ambas. – Como Dáriuss não se manifestou, Évelyn prosseguiu: – Resplendorr precisa de guerreiros para impedir o avanço dos Povos-Sem-Rei, pois não conseguem sozinhos e nem podem requerer mais esse favor ao Império, por razões que o Soberano bem conhece. E Essência não possui homens suficientes para essa ajuda, o Soberano também sabe a razão. É preciso o apoio dos demais países, em especial, de Soberannia, para sobrepor essa ameaça. Em verdade, é preciso que ordene o avanço de seu exército sobre Resplendorr. Quem sabe, dessa vez, seja possível aniquilar mais do que um mero inimigo. Quem sabe assim o Soberano consiga reaver a confiança do Império.
A princípio Attad evitou traduzir aquelas palavras, mas Dáriuss gesticulou, exigindo-lhe a tradução. Attad a fez, e, mesmo remodelando o tom instigante da fala de Évelyn, notou um perigoso interesse ouriçando-se dentro do Governador.
– E a outra missão, posso saber? – perguntou Dáriuss.
– A outra tem como objetivo capturar Lúciann – respondeu Évelyn de pronto. – Além de fazer justiça ao seu sangue, o Governador Edmurr deseja arrancar dele a verdade sobre a morte de Eldric. Edmurr acredita que possui uma dívida de honra com o seu antigo amigo e aliado. E ele não descansará enquanto não fizer a justiça alcançar Lúciann. O Soberano bem conhece a sanha da Casa de Edmurr, estou certa?
Logo que Attad terminou a tradução, Dáriuss afundou-se no trono, e o silêncio por um instante foi absoluto. Attad perguntou a si mesmo se não era o momento de retirar-se dali com o filho durante o tempo que ainda podia. Uma parte de si o alertava que devia fazê-lo, o mais urgente possivel. A outra, no entanto, censurava-o para não se afastar de Évelyn de modo algum. Ela subitamente se tornara um risco incalculável para suas pretensões. Évelyn sabia de sua partida. Sabia de todas as intenções dos Magníficos. Talvez fosse o caso de dar um basta naquela situação.
– Querem mesmo que eu acredite nesse teatro? – Dáriuss verbalizou a indignação. – Querem que eu autorize a travessia do Corredor da Névoa, para que finjam ir à presença de um rei alto proclamado que governa um mausoléu que ninguém sabe se ainda existe, enquanto uma infantaria minha se põe a bater contra aquelas criaturas que não respeitam lei alguma?
– As Ruínas de Antares ainda estão lá, Soberano – enfatizou Amirr.
– Pros raios! – explodiu Dáriuss, elevando-se do trono novamente. – Não deixarei que meus generais saiam de Soberannia. Não num momento como esse. Temos sinais do pior por todo canto, eu muito bem sei, e por isso mesmo que Soberannia precisa de seus generais e de seu exército todo aqui, dentro de seus limites.
– E quanto ao Pacto Imperial? – Lóriel rebateu num atrevimento impensável. – É dever de Soberannia atender aos pedidos de Resplendorr. Devo lembrar ao Soberano que as punições nesse caso são de severas consequências a toda vossa linhagem.
Dáriuss ficou um tempo imóvel, decerto refletindo sobre o tamanho daquela audácia. Depois, calmamente retornou para o trono.
– Então é isso? Vieram aqui para me ameaçar? É isso mesmo, Lorde Amirr?
Olhares tensos se cruzavam no salão, e Attad calculava as consequências caso decidisse por fim àquele encontro. Talvez fosse o melhor a se fazer, com certeza o mais imprudente, mas o que certamente iria corrigir aquele rumo incerto e pôr um fim à ameaça de Évelyn. Por outro lado, havia sérios riscos a se analisar. Aquilo iria contra a sua lei, e uma nova transgressão podia lhe custar muito caro àquela altura. Dáriuss não tinha ideia do verdadeiro poder daqueles diante dele.
Ainda em dúvida, Attad deu uma olhadela na direção de Évelyn e por último firmou os olhos sobre o filho. O semblante de Rodden agora não tinha mais aquele contorno assustado de quando entrara no salão, mas, sim, uma sombra de irritação. Por um instante, ele o encarou como duelasse contra um adversário, mas em breve desviou o olhar para a mão enfaixada de Attad.
Não, Rodden, não…
Ou as forças maiores ignoraram as súplicas de Attad ou não conseguiram deter Rodden a tempo. De súbito, ele agarrou a mão de Attad e apertou-lhe o ferimento com força.
Attad pressionou a boca, mas não se livrou do violento espasmo que estremeceu-lhe o corpo. Com um solavanco, livrou a mão do terrível aperto e em desespero tentou recapturar o filho.
Contorcendo-se, Rodden conseguiu se esquivar.
Solto, ele avançou até Dáriuss, ajoelhando-se diante do Governador.
– Soberano, por sua glória e honra, pelo perdão de todos os meus erros e em nome de Soberannia e de minha Casa, eu me ofereço para ir às Ruínas de Antares.
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– NUNCA!
Attad percebeu seu rugido inundando o Salão da Glória tarde demais. Largando o outro rapaz, caminhou até Rodden com a impressão de que o mundo balançava. Seus pensamentos rodopiavam como numa tempestade, com ele reprimindo o crescente desejo de apresentar o peso da mão à face do filho. Aquilo não era o certo, e ele sabia. Não era o que um pai desesperado devia querer para um filho.
– Eu o proíbo de ir às Terras Proibidas, Rodden – disse, tentando controlar a raiva e aflição. Por favor, Rodden. Não me faça essa vergonha. Não faça essa loucura!
– Como herdeiro do Forte Norte, Rodden tem direito de atravessar o Corredor da Névoa, sem a requerida permissão – disse Elmon. – É inclusive digno de representar este país.
– Ele ainda não é um general, Conselheiro-Mestre – rebateu Attad.
– Mas com o tempo será – Amirr se aproximou de Rodden e apoiou a mão no ombro dele ao passo que Rodden se levantava. – Toda ajuda tem o seu valor, meu jovem. Fazer a justiça alcançar um malfeitor poderá ser um importante aprendizado para o seu futuro comando.
– Ele não vai, Amirr! – Attad estava dividido. Desafiar a decisão do Governador poderia colocar seu filho em perigo ainda maior, mas aceitar aquela sandice significava enviar Rodden a uma missão potencialmente mortal.
– Acalme-se, ilustre Grão-General – sussurrou-lhe Évelyn, ao envolver o braço de Attad em suas mãos, de um modo que não pairasse mais dúvidas. – Não lhe avisei que perderia o melhor se tivesse saído naquele momento?
Attad a encarou. Algo perturbador se movia nos olhos dela agora.
– Os sábios bem diriam que a decisão é inteira do Soberano – disse então Elmon.
Apesar de Attad odiar afrontas, o Conselheiro-Mestre tinha lá sua razão. Com um puxão, desprendeu-se de Évelyn para então se voltar a Dáriuss. Naquele instante, a palavra pertencia ao Governador.
– O que mais desejam de mim? – Dáriuss dirigiu-se a Amirr.
– Éveru – Amirr respondeu sem rodeios. – Precisamos dele para nos guiar.
– Hummm… – fez Elmon com o seu típico sarcasmo. – Os calabouços dessa fortaleza é a morada desse um que exigem. Pelo que me lembro, ele foi pego tentando emboscar o Soberano, isso depois de matar o Conselheiro-Mestre de Essência. É um sujeito sinistro, que só está vivo à custa de uns tolos que teimam em endossá-lo.
Évelyn lançou uma olhadela feroz sobre Elmon e depois se voltou para Dáriuss, e de novo o Governador se encontrava no centro das atenções. Dáriuss, por sua vez, mantinha a cabeça alta, com uma frieza incomum no semblante.
Attad ansiava que Dáriuss tivesse sabedoria e boa memória para o bem de todos. Rodden não era apenas o seu filho. Era o único filho que Endy lhe havia dado, a última memória viva da esposa, a única vida que o amor dos dois tinha gerado. Era, acima de tudo, o mais valioso elo que prendia Attad àquele maldito mundo.
– Você mencionou um antigo tratado – disse Dáriuss a Lóriel, que assentiu apressadamente com a cabeça. – Pois bem, as obrigações de Soberannia com os tratados do Império se limitam a um número máximo de dois mil guerreiros.
– DOIS MIL… – Amirr dirigiu um olhar impassível a Attad, que pouco compreendeu. A ira ardia tão fortemente que se tornara impossível entender aquele gesto. – Precisamos de ajuda para combater os Povos-Sem-Rei – continuou Amirr. – É dever de Soberannia… e observar cláusulas de tempos remotos… isso não se faz. – Ele se virou para Dáriuss, a boca retorcendo-se. – Temos de lidar com uma ameaça que ultrapassa nosso poder de guerra. Como manteremos a paz que há séculos recai sobre nós?
– A que paz se refere, caro nobre? – Dáriuss se ergueu do trono num rompante. – Para lá de séculos, enviamos nossos homens para as fronteiras mais longínquas, para baterem contra um inimigo perverso e ardiloso. Nós os separamos de suas famílias e os mandamos aos confins do mundo, onde se tornam vítimas de emboscadas ou alimento de serpentes voadoras ou de anões que se acham deuses. E quanto às Terras Sombrias? O que me diz? Os furianos bem sabem o quanto é ingrato enfrentar as tempestades que vivem daquele lugar. Por tudo isso e muito mais que eu poderia rememorá-lo, Lorde Amirr, como se atreve a dizer que repousamos sob a paz?
Uma troca tensa de olhares estendeu-se por um longo tempo, mas ninguém se apresentava para protestar contra Dáriuss. O Governador falara bem, não havia dúvida, mas continuava imaturo para lidar com assuntos dependentes de boa sensatez e resistência moral, e, naquele momento, demonstrava como a ambição e a cobiça facilmente o cegavam. Eis o homem que até há pouco conspirava por uma confissão contra Évelyn.
– Attad… – o próprio Governador rompeu o silêncio – reúna dois mil homens e mande uma campanha para Resplendorr. E mande libertar Éveru… – levou um dedo a boca antes de prosseguir. – Antes, esfole uma das mãos dele sem lhe prover erva alguma para atenuar a dor. Se um dia aquele malfeitor retornar a Soberannia, por qualquer razão que possa inventar, eu tratarei esse gesto como um conluio dos essenos contra Soberannia.
Attad assentiu, e o Governador então se voltou para Elmon.
– Prepare uma autorização para que estes à minha frente possam atravessar o Corredor da Névoa. Eu dispenso o tributo deles. E apesar de que acredite que não seja necessário, redija uma autorização de regresso também. Essa é, e será, a única resposta de Soberannia à demanda do Império. E quero que fique nos registros que não irei tolerar pedido algum que esteja fora dos tratados.
– E quanto a mim, Soberano? – questionou Évelyn. – Venho, porque precisamos tratar de assuntos adicionais. Eu lhe devo uma conversa e creio que irá querer me ouvir dessa vez.
Um nó se formou na garganta de Attad diante da hesitação para traduzir aquela fala a Dáriuss. Assim que o fez, notou um aspecto dúbio apossando-se do semblante do Governador. Abanando a cabeça, Attad se esforçou ao máximo para orientar Dáriuss a refutar o pedido, mas os olhos do Governador já estavam cheios de fascínio por Évelyn a essa altura.
– Procure-me logo após o anoitecer – declarou o Governador, por fim, e já foi se retirando do salão.
Attad protegeu a mão e curvou-se para a típica passagem manca de Dáriuss em direção à saída. Sobretudo pelo último pedido, agora podia tratar do caso de Évelyn com o devido cuidado exigido. Embora seu espírito continuasse um tanto temeroso, tudo se encaminhava da forma que mais precisava. Sua partida para Profecia já estava acertada, o caminho até os Deuses era mais que certo. Para o seu alívio, até Rodden agora se encontrava sobre perfeita vigilância. Sua palavra continuaria íntegra, assim como havia jurado a Endy, e era-lhe tudo favorável, até que o Conselheiro-Mestre elevasse novamente a voz.
– Devo alertar que o Soberano não decidiu se aceita o juramento de Rodden.
Dáriuss estacou de súbito, e Attad fechou com força a mão em seu lenço. Elmon iria pagar caro por aquela afronta.
– Já faz o bastante ao permitir que atravessemos o Corredor da Névoa, Soberano – interveio Amirr, a voz trêmula. – Apesar de que seja de bom grado a presença de um futuro general em nossa missão, ela é desnecessária em sua plenitude.
– Os sábios bem gostariam de saber por que Soberannia deve se ausentar de uma missão que visa alçar justiça sobre um inimigo do Império – alfinetou Elmon. Sempre manipulador, o Conselheiro-Mestre sabia como jogar com as emoções de todos. – Será que essa missão tem algum outro objetivo não revelado aqui? O que há de oculto que o Lorde de Resplendorr não deseja que este governo tenha ciência?
– Não… nada – Amirr engasgou-se todo, e Attad teve uma pontada súbita no peito. – Pela Casa de Edmurr, fomos incumbidos de capturar Lúciann e apresentá-lo a seu julgamento em Resplendorr, e isso já foi dito aqui, às claras. Acaso o conselheiro não goza de boa audição ou memória?
A princípio, o salão caiu em total silêncio. Um estanho incômodo de repente pairava sobre todos e ia ficando mais tenso a cada olhar trocado entre os presentes, a cada pequeno gesto das mãos, mas ainda assim o ambiente se mantinha taciturno, e isso parecia um bom sinal aos olhos de Attad. Parecia, porque logo em seguida Elmon forçou uma risadinha.
– Um lorde e uma herdeira liderando uma missão pelo vasto domínio dos Draconianos…
– Não sou apenas uma herdeira – irrompeu Lóriel. – Sou guerreira e mestre em armas também. Temo que não haja aqui um único soldado capaz de me enfrentar.
– Interessante, ilustre herdeira… – Elmon prosseguia com a ironia – muito interessante. Muito curioso os sábios achariam essa missão, o Soberano não concorda?
Todos os olhos se voltaram para Dáriuss. Em resposta, ele balançou a cabeça num gesto enigmático, como que um pouco distante dali. Logo depois, no entanto, ele estreitou o olhar e o dirigiu a Attad.
– Como filho que é do Senhor Grão-General do meu governo, Rodden deve apresentar-se a Lorde Amirr, em meu nome.
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Dáriuss se pôs a marchar em frente, e Attad sentiu a raiva e o desespero se entrelaçando no peito. Dividindo a atenção entre Rodden e Évelyn, sentia-se em pânico por se dar conta de que a melhor opção o faria quebrar com sua mais importante promessa. Até por isso, engolindo o orgulho e, mesmo que jamais devesse tê-lo feito, dirigiu-se às pressas aos guardas ladeando o salão e, depois de lhes dar a ordem que mudaria sua vida para sempre, disparou atrás de Dáriuss.
Enquanto corria no encalço do Governador e dos dois soldados que o protegiam, Attad lutava para formular uma estratégia para confrontar Dáriuss de igual para igual. Fora justamente uma emboscada como aquela que havia tornado sua vida um emaranhado de promessas e responsabilidades, que até hoje não dava conta de se livrar. Attad estava determinado a impedir que o destino o traísse outra vez. Já havia perdido Endy em condições incertas, não arriscaria uma polegada no caso de Rodden. Por outro lado, não podia se rebelar e tornar-se inimigo de Dáriuss. Com total ciência do que o Governador desejava dele, entregar mais homens às vontades de Soberannia era uma hipótese que também precisava evitar. Além do mais, não era de mais soldados que o Governador precisava para lidar com as calamidades prestes a acontecer. Era de um pouco de sorte e muita sabedoria.
Pouco depois, ao dobrar em direção ao corredor que levava ao gabinete do governo, Attad visualizou uma brecha entre o Governador e os soldados na retaguarda. Sem hesitar, atirou-se entre os homens e agarrou o espesso manto de Dáriuss, abrindo uma enorme fenda no tecido.
– Rodden é fruto do meu sangue, herdeiro legítimo do meu nome, meu filho…. Não posso admitir que vá às Terras Proibidas.
Dáriuss resmungou, contorcendo-se para se libertar, mas o manto chiou ao abrir-se ainda mais, com Attad o segurando firmemente. Os soldados então avançaram sobre Attad, numa confusão de mãos, braços e berros, e mesmo assim não conseguiram afastá-lo. Logo que Attad o soltou por vontade própria, Dáriuss lançou-lhe um olhar em chamas.
– Não autorizo a nenhum dos meus generais a fazer parte desta missão imbecil. Isso se trata de um truque de Edmurr, só pode ser. Concordo com você agora, Attad. Hoje à noite anunciarei o cancelamento das festividades. Eu mesmo tratarei com os convidados assim que chegarem. De toda essa perda de tempo, entendi que realmente precisamos nos preparar para combater o verdadeiro inimigo e o quero empenhado nesta última missão, assim como desejava.
– Faço tudo o que me pedir, Dáriuss, desde que meu filho não parta nessa missão.
– Por Ragnen! – praguejou o Governador. – Por que sempre tem que se opor às minhas decisões? Já não estou fazendo tudo o que pedia de mim?
Attad se segurou. Até quando suportaria tudo aquilo?
– Só exijo que não inclua meu filho em suas pretensões, Dáriuss. Exijo Rodden ao meu lado.
Dáriuss encheu o peito, mas não revidou. O Governador podia ter todos os defeitos que um homem insensato e ganancioso possuía, mas sempre fora prudente com relação aos desafios. Talvez por isso, com um meneio de cabeça, ele dispensou sua guarda pessoal e, calmamente, pôs-se a caminhar adiante. Attad o acompanhou.
– É meu dever proteger a população de Soberannia – disse Dáriuss. – E, como Soberano que sou pela graça de Ragnen e seus Guerreiros Imortais, tenho isso como incumbência séria, Attad. Acredito que Rodden possa representar os soberanneses aonde o seu Governador preze por ir. Não quero ser obrigado a julgar o filho do meu Grão-General. Ele é jovem, comete erros, graves erros, mas há tempos demonstra todo potencial que vai além dessas muralhas. Ele deve ser os olhos atentos de Soberannia nesta missão. Se pretende comandar parte de meu país, deve ser capaz de vencer as malícias de Amirr, não acha?
Attad preferiu se manter quieto.
– Age com grande equívoco em não confiar em seu filho, Attad. Como pai, compreendo sua dor. Se pudesse escolher, jamais desejaria que Cáciuss cruzasse as muralhas desta fortaleza. Um dia, e temo que esse dia chegue mais breve que o raiar de uma manhã, Cáciuss escreverá seu nome na história, e eu terei de me contentar em ter orgulho de seus feitos, de onde quer que eu esteja.
– Também me orgulho de Rodden.
O Governador parou de frente para Attad.
– Não, Attad. Você não se orgulha do seu filho. – E sondou-o como se buscasse algo no interior de Attad. Aquela conversa começava a seguir por um rumo que Attad não pretendia tomar. – Tem alguma coisa além nessa sua preocupação, não tem? Diga para mim. Quero ouvir.
Attad engoliu em seco. Virou então a cabeça para as sentinelas ocas que adornavam o corredor. Além de latejar, sua mão agora formigava.
– Quero que saiba que eu respeito o seu luto, Attad. Mas você precisa esquecê-la. Até quando viverá com essa lembrança correndo em seu sangue? Você pode ter a mulher que quiser, quantas desejar, e ainda assim prefere amar uma que já se foi?! Essa missão pelas Terras Proibidas pode ter grande valia para o seu filho, tente enxergar. Rodden poderá desvendar o mundo em sua natureza mais perversa. Passará a compreender os atos que, como Grão-General, às vezes precisa tomar.
– Não há nada a desvendar nas ruínas de um mundo governado por homens desalmados e trevas que pouco se conhecem, Dáriuss. – Attad sentia um sabor amargo na boca. Não podia agir pelos próprios instintos, mas até eles pareciam meio atordoados. Tinha de honrar com o seu juramento, no entanto, não podia correr um risco desnecessário. Tinha de encontrar um meio termo, e rápido. Não podia permitir que Rodden atravessasse as muralhas da Fortaleza Montanhosa sem ele. Já era mais que tempo de partirem daquela cidade. Attad não via outra saída. Então, agarrado ao seu lenço, caiu sobre um joelho diante do Governador e fechou os olhos. – Dáriuss, eu aceito rever os termos do nosso acordo. Deixe Rodden fora de tudo isso e não o julgue pelo que ele possa ter feito ao tal cavalariço. Eu mesmo tratarei desse caso. É tudo que peço.
Dáriuss inicialmente se calou, mas Attad podia sentir um largo sorriso se formando dentro do Governador. Aquilo iria trazer graves consequências para todos, avaliava Attad em seu silêncio, mas não restava opção. Pouco depois, Dáriuss exalou um longo suspiro, e Attad reabriu os olhos.
– Anda, erga-se – ordenou-lhe Dáriuss. – Não quero falar para as suas costas.
Demorou um instante, mas Attad obedeceu.
Dáriuss então o olhou longamente.
– Pois bem… – E pousou a mão no ombro de Attad –, volte e garanta a renúncia de Rodden à missão, por escrito. Avalie, você mesmo, o castigo que seu filho merece pela confusão que se meteu. Creio que seja uma troca justa. Encarregarei Elmon de encontrar alguém para o lugar do seu filho. Amanhã pela manhã, conversamos sobre as exigências que desejo rever no nosso tratado. Estou ansioso, pois tenho certeza que será o melhor para Soberannia e para o Império.
E assim Attad fazia.
À noite, ao chegar à entrada dos seus aposentos, Attad jogou um fruto-de-mago para dentro da boca, mas não o engoliu de imediato. Havia mandado prender Rodden ali dentro, e agora tentava criar coragem para enfim enfrentá-lo. Soubera, horrorizado, o que Rodden e sua colega Layla, a quem Attad julgou ser um rapaz, haviam aprontado com Adrienn, e agora já não sabia se tinha medo ou curiosidade em conhecer o que seu filho havia inventado para atrair Adrienn até o mirante da Torre dos Ecos. Rodden nunca agira com tamanha rebeldia. Naquele dia, ele havia ido longe demais, mas Attad avaliava tratar dessas questões apenas durante a viagem para Profecia. Havia outra questão muito mais importante para aquela noite. Era chegado o momento de ter uma conversa séria com o filho.
É hora de Rodden saber quem somos nós de fato.
Ao dispensar os homens que montavam guarda diante dos aposentos, Attad engoliu o fruto-de-mago, descalçou a manopla e a luva, jogou-as no chão e passou a avaliar o ferimento na mão. Três pontos de puro tormento escondiam os vermes que iriam regenerar a carne e devorar as doenças que corriam em suas veias. A acidez das ervas de cura continuava a queimar na garganta. Isso, por si só, já fazia Rodden merecer um longo castigo.
Que tipo de pai eu tenho sido para Rodden?
Ao encaixar a chave no orifício da porta, Attad respirou fundo e se amparou no batente, sentindo o mundo subitamente se tornar um lugar frio, escuro e vazio. Mesmo assim, seus pensamentos passaram a gravitar ao redor de Évelyn. Sua partida estava próxima, e ainda faltava decidir como lidar com aquela ameaça.
Por sorte, uma gritaria vinda do fim do corredor trouxe Attad de volta a realidade.
– Grão-General, Grão-General…
Attad hesitou. A essa altura, um vento frio e forte soprava do coração do palácio e cada vez mais o fazia querer terminar aquele dia insuportável. No entanto, o alvoroço também evoluía, tomando um rumo cada vez mais austero. Quando esse maldito dia irá acabar? A passos pesados, Attad se arrastou até a confusão.
Chegando lá, encontrou o general Kregg segurando a garganta de uma mulher idosa, enquanto dois soldados a imobilizavam contra a parede. Attad se perguntou como três homens fortes podiam ser incapazes de segurar uma única mulher.
– Que diabos está acontecendo aqui?
– Dissemos que não queria incômodo, Senhor – respondeu o general Kregg. – Mas ela teima em lhe ver.
Attad tentou dedicar um olhar cauteloso à mulher, mas enfrentava dificuldades para manter a visão concentrada. Ainda assim, conseguia perceber uma aura feroz exalando-se dela. Nada ameaçador além disso.
– Podem soltá-la, general.
Kregg então afrouxou o braço, e os guardas a largaram.
A mulher recompôs as vestes, bufando.
– Minha neta não retornou para casa.
– Não tenho a menor ideia de sua neta.
– Todos sabem quão severos são os seus castigos, sor – protestou a mulher. – Mas minha neta ainda é uma criança. O senhor não se envergonha por isso?
– Não tenho responsabilidade pelo sumiço de ninguém – rebateu Attad, ao piscar os olhos depressa. O efeito das ervas o empurrava mais rápido do que previa para as sombras. Precisava conversar com Rodden e tratar da renúncia dele ainda naquela noite. – Kregg, leve-a daqui.
A princípio, os guardas se entreolharam, mas em seguida avançaram sobre a mulher, e ela se projetou para cima de Attad, escorregando-se nele para o chão, suplicando, chorando, fechando a mão ferida de Attad entre as dela.
– Eu lhe imploro, meu senhor. Devolva minha neta para mim.
Attad a empurrou, tentando se desvencilhar, mas a mulher resistiu, lutando contra Kregg e os guardas. Attad então esticou o braço, puxando-o, deixando os músculos retos. A mulher, no entanto, não o soltava.
– Perdoe minha neta, meu senhor. Eu lhe imploro.
A visão de Attad de súbito ficou nebulosa. Apoiando-se à parede, ele comprimiu os olhos na tentativa de dominar o gênio. Não podia agredir uma velha.
– Tirem essa mulher daqui, agora!
Kregg e os guardas enfim imprimiram força para arrastar a mulher, e, assim que conseguiu se desvencilhar dela, Attad perguntou a si mesmo por que o toque daquela infeliz lhe doía tanto daquele jeito. E, enquanto o general Kregg e os guardas a afastavam, Attad apoiou as costas à parede e agarrou-se à mão, trincando os dentes. A dor era tamanha que mal se deu conta de que os pontos do ferimento haviam se rompido. Quando respirou o odor do próprio sangue, lutou consigo mesmo para controlar o acesso de fúria.
Nesse tempo, a mulher se debatia, e lutava, e vociferava, ao passo que era arrastada. O último grito dela, porém, atravessou Attad feito um espírito das trevas.
– O que ela disse?
A mulher continuou a se debater aos berros, sem repetir o que Attad desejava ouvir. Ele então correu até a mulher, empurrou um dos guardas e fechou a mão na mandíbula da infeliz, apertando com força.
– O que essa velha maldita disse?
Kregg fez que não com a cabeça, e Attad apertou ainda mais o queixo daquela delinquente. Por fim, obrigou-se a soltá-la.
– Minha neta… Ela… Ela… – A mulher começou a tossir.
– Qual o maldito NOME da sua NETA? – Attad gritou, mas a mulher tossia, e tossia, e tossia…
– Layla… – disse ela em meio à crise. – Ela chama Layla.
Layla! Uma onda gélida correu da cabeça aos pés de Attad. Meio cambaleante, ele recuou, desejando não acreditar no que estava acontecendo. Não, não, não, não, não pode ser, não pode ser! Virando-se, não pensou duas vezes.
Disparou na direção dos aposentos.
Chegando à porta, seus dedos tremiam ao segurar a chave, que na confusão havia esquecido pendurada na tranca. Assim que conseguiu girá-la, Attad empurrou a porta com toda a força, mas ela se manteve rígida, talvez emperrada ou trancada por dentro.
Infernos!
Deu, então, um, dois, três violentos socos na porta, ao passo que gritava em desespero por Rodden. Afastando-se da porta, endureceu o braço, comprimindo-o rente ao corpo. Como Attad queria acreditar que acabara de despertar de um pesadelo. No entanto, por mais que quisesse o contrário, sabia que a partir daquele momento nada seria como antes.
Por fim, atacou a porta, até arrancá-la das dobradiças.
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O ruído espesso da chuva parecia o único rumor na calada da noite, além, claro, do resfolegar nervoso do cavalo de Rod e Layla. Havia longo tempo que Rod escolhia, cautelosamente, o caminho pela estrada que levava ao Corredor da Névoa. Seguia sempre à margem dos bosques densos, cruzando pequenos riachos, com sombras de montanhas distantes delineando o horizonte. Na verdade, tudo parecia deixar aquela noite ainda mais escura e perigosa. Rod já se sentia exausto de tanto procurar pela entrada da base à beira do abismo, um precipício conhecido por engolir a luz do dia. E, quando a estrada divergiu dos mapas, fazendo uma curva acentuada para o leste, ele puxou as rédeas com força, freando a montaria.
– O Corredor da Névoa não devia ser a oeste?
Soltando-se da cintura de Rod, Layla escorregou da montaria.
– Aonde você vai, Layla?
Layla não respondeu. Apenas ficou observando os bosques como que um tanto distante. Desde que haviam partido que Layla manifestava preocupação, e Rod se indagava se era por medo ou por outra razão. Afinal de contas, por uma motivação que não havia ficado clara, ela havia exigido acompanhar Rod pelas Terras Proibidas. Fora a única condição que ela impôs para libertar Rod dos aposentos do pai. Porém, desde então, ela tecia suspeitas sobre Sor Amirr, afirmando que Rod podia estar sendo enganado pelo nobre. Rod tinha enormes desconfianças também. E, de certo modo, cada vez mais o desejo de encontrar a base na entrada do Corredor da Névoa se apequenava diante do pensamento de regressar. Abandonar a proteção das muralhas da Fortaleza Montanhosa, ainda mais daquela forma clandestina, podia ter sido mais um grande erro, mas Rod evitava refletir a fundo sobre aquela hipótese.
– Sor Amirr cumprirá com a palavra, Layla. – Eu me entendi com ele. – Pode acreditar.
Layla apontou para os bosques.
– Tem algo estranho ali.
Apesar da chuva e da escuridão, Rod sabia. Os ventos, o barulho das árvores, a estrada… Uma sombra parecia vigiá-los, e Rod nunca estivera tão temeroso.
– Só estamos cansados, Layla. – Rod também desceu da montaria. E, enquanto espreitava o escuro chuvoso da mata, tentou rememorar o caminho que havia percorrido. Que merda!
Nesse instante, Layla puxou-lhe a manga da cota de malha.
– E se os comentários forem verdadeiros?
– Que comentários?
– Do Necromante.
Rod encheu os pulmões, sentindo o ar frio e úmido da noite. Seus olhos ainda se ajustavam à escuridão quando um pálido facho de luz, pulsando feito um farol ao longe, chamou sua atenção. Seria aquele o acampamento dos homens de Sor Amirr? Mas como e por que eles acenderiam uma fogueira com toda aquela chuva? A torrente chuvosa tinha desatado havia bastante tempo, e se distanciar da estrada parecia arriscado demais. Entretanto, ficar ali, parado, podia ser mais perigoso.
– Por que você quis vir comigo, Layla?
– Tem certeza que não sabe?
Layla o encarou, e Rod passou a mão no rosto a fim de secá-lo e aproveitar-se para se desviar dela. Em seguida, guiou o cavalo apressadamente para baixo de uma árvore malcheirosa e o amarrou ali. Sor Amirr lhe havia dado a palavra de que seus homens o esperariam perto da base, e Rod carregava no bolso a certeza disso. Carregava duplamente na verdade. Ainda assim, Rod se indagava o que os homens de Sor Amirr estariam fazendo no meio da selva.
– Não tenho como prometer a sua segurança, Layla. E a última coisa que queria era envolvê-la nisso tudo. Se continuar em frente, não haverá mais volta. As Ruínas ficam muito longe daqui. E se bem entendi, parece estar havendo algo estranho ocorrendo por aquelas bandas.
Layla não se manifestou. Ficou de cabeça baixa, talvez pesando as opções ou se protegendo da chuva.
– Se quiser retornar, eu vou entender – disse Rod, por fim, e então se lançou em busca de Sor Amirr.
Pouco adiante, o chão havia se tornado um lamaçal, repleto de ramos espinhosos que criavam armadilhas invisíveis. Com dificuldade para andar, Rod seguiu em frente, às vezes caminhando, às vezes escorregando, precisando cuidar do tilintar de suas moedas, com espinhos perfurando a perna, soltando um grunhido ou outro, praguejando, desejando regressar. Atrás de si, Layla enfrentava a trilha em absoluto silêncio. Só me resta confiar no homem que podia ter acabado com a minha vida.
O nobre de Resplendorr, por mais absurdo que parecesse, havia se tornado a sua maior esperança para alcançar as Ruínas de Antares, e Rod temia estar envolvendo Layla numa trama cujo perigo nem ele conseguia calcular. Sor Amirr tinha graves motivos para odiá-lo, não para tratá-lo da forma cordial como fizera. Especialmente, após o inusitado pedido dele, o qual Rod se viu forçado a atender, tudo havia mudado, e Rod ficara com total ciência de que não devia ter ninguém ao lado. Mas o que podia ter feito para evitar a companhia de Layla? Fora ela que o libertou dos aposentos de seu pai. Fora ela que o ajudou na fuga. Rod lhe havia dado a sua palavra em troca, mas o problema era que agora Layla era um peso a mais para ter de equilibrar, entre tantos que já precisava.
Se quiser trazê-la de volta, terá de aprender a agir sozinho, disse Rod a si mesmo.
Aproximando-se da luminosidade, Rod correu para trás do tronco estreito de uma pequena árvore. Contudo, aonde havia chegado não conseguia enxergar nada além da forte escuridão do bosque.
– Não saia daqui, Layla.
Com cuidado, Rod se moveu pela mata, de modo a circular o ponto de onde a luminosidade vinha. Ao avistá-la novamente, acelerou na direção da luz. Depois de um, dois escorregões, curvou-se, protegendo-se atrás de um rochedo, esforçando-se para não perder a luminosidade de vista.
Enfim conseguia enxergá-la um pouco melhor.
Na verdade não era uma fogueira. Pareciam apenas brasas, debaixo de uma proteção improvisada de folhas e gravetos. Provavelmente uma isca.
Foi quando um ruído, diferente da chuva, crepitou em algum lugar ao redor.
Rod se virou numa expectativa incerta.
Nada. Ninguém.
Então girou de um lado para o outro.
De novo nada. Que merda!
– Tem alguém aí? – arriscou, e em seguida se viu forçado a curvar o corpo e cobrir os olhos. Ao retesar-se outra vez, um peso caiu em seu ombro.
Era Layla. Estava agitada.
– O que foi? – Então, com o canto do olho, Rod detectou um movimento. Agarrando o punho de Layla, disparou.
Desconfiado da própria visão e dos ouvidos, Rod correu, mantendo a cabeça erguida, enfrentando os ventos e a chuva. O chão lamacento, os musgos, os galhos espinhosos; os perigos se multiplicavam debaixo dos pés.
Chegando à beira de uma grande árvore, parou.
– Não consigo mais – jorrou a voz desprovida de força, mas ela mal soou como um grunhido.
– O que você viu? – indagou-lhe Layla, as mãos em pânico.
Rod balançou a cabeça sem uma palavra.
Um raio ressoou nos bosques.
– Acho que um vulto, uma coisa se movendo, não sei. – Rod retirou o excesso de água do rosto com a mão. O barulho furioso das árvores, da chuva, do vento; a floresta inteira parecia emitir um alerta. De quem afinal estavam fugindo? Começava a tecer suspeitas quando um novo clarão deu forma a dois vultos em movimento. – Corre, Layla!
Rod e Layla dispararam novamente.
Dessa vez Rod mal percebeu os pés alcançando o chão. Os músculos de repente latejavam, e o ar encharcado congelava os pulmões, mas ele se esforçava para que nada distraísse seus sentidos. Depois de desviar de um arbusto, viu uma vegetação próxima da estrada. Gesticulando para Layla, atirou-se ali atrás.
Layla se juntou a ele logo em seguida, e Rod não teve coragem nem de se ajeitar. Na verdade, ambos não produziram um ruído sequer. Esperaram juntos, grudados, no mais profundo silêncio.
E não demorou muito para dois vultos emergirem da escuridão.
Resfolegando como velhos cavalos, os dois não se preocupavam em abrigar as carrancas largas e ameaçadoras da chuva.
– Deixamos o ladrãozinho escapar mais uma vez. – Aquela voz azeda ecoou como uma chicotada em Rod. Pertencia ao grandalhão que havia tentado tomar-lhe o punhal.
– Que se vá aos demônios aquele bostinha – praguejou o magricela. – Viu aquela coisa?
Outra vez os bosques se acenderam, seguido de um violento ressoar.
Abaixando-se um pouco mais, Rod escorregou lentamente a mão até o punho da pequena espada que havia roubado de Adrienn.
– O que disse? – guinchou o grandalhão.
– Deixa pra lá – o magricela chiou. – Melhor nos escondermos. Cuidamos do ladrãozinho depois.
Os malfeitores então tomaram um rumo incerto e logo desapareceram. Pouco tempo depois, a chuva amenizou e até o vendaval diminuiu.
Com um suspiro amargo, Rod esvaziou o peito e afastou-se de Layla, a fim de tatear o bolso que abrigava sua relíquia. Mal acreditava que um único artefato fora capaz de fazer os bandidos o seguirem àquela distância toda. A vida da minha mãe vale todos os riscos.
Layla deu-lhe um cutucão no braço.
– Conhece aqueles dois?
– É uma longa história.
Apesar das câimbras multiplicando-se pelo corpo, Rod foi subindo a cabeça sobre os arbustos, bem devagar. Ao retesar-se por completo, bisbilhotou a escuridão com cuidado. Ouvia um silêncio aterrorizante agora.
– Não queria saber por que me infiltrei nessa missão, Layla?
Layla também se ergueu.
– A minha mãe… eu posso… – explicava Rod quando um estalo abrupto o interrompeu. Ele se virou.
Deu de cara com o grandalhão.
– Achou que havia nos enganado, ladrãozinho de merda?
De novo Rod levou a mão à espada.
Tarde demais.
Sentiu um golpe forte.
Um único.
Na nuca.
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Uma luz crua despontava pelos vitrais às suas costas, e os olhos pesavam, desejando se entregarem às sombras. E, mais uma vez, Attad atravessava o saguão principal de seu palácio, incomodado com o ressoar de sua indumentária, irritado com o cheiro do próprio suor, sem encontrar uma vivalma que soubesse do paradeiro de Rodden.
No entanto, ao vislumbrar o general Kregg caminhando em sua direção, um eco esperançoso regressou à alma. Sem perder tempo, levou a mão ao bolso escondido atrás do saiote e retirou dali uma mensagem selada.
– Três cavaleiros saíram do castelo ontem à noite além de Lorde Amirr, Lorde Éveru e a Senhora Lóriel, Senhor – relatou o general Kregg ao alcançar Attad. – Disseram se tratar de uma missão oficial.
Attad respirou fundo. Todos os dias dezenas de cavaleiros saíam da Fortaleza Montanhosa em missão. O que Kregg tinha na cabeça?
– E para onde foram?
– Parece que seguiam para o Corredor da Névoa. Havia uma menina entre os três. Meus homens já estão atrás deles, Senhor.
Attad arranhou a barba.
A avó de Layla surgiu ao seu lado repentinamente.
– O senhor tem que ir atrás deles. – O rosto dela estava inchado, pegajoso de lágrimas, mas ainda era duro feito pedra. Como podia ser tão teimosa daquele jeito? – Se eles cruzarem o Corredor da Névoa… Não… não quero nem pensar.
Attad refletiu por um instante, mas já não sabia mais nem o que fazer. Por fim, acenou com a cabeça para Kregg, permitindo a presença daquela mulher.
– Tudo pronto para a minha partida?
Kregg fez que sim com a cabeça.
– Meus homens já o esperam, Senhor.
– Então faça com que isso chegue às mãos de Lorde Lokke o quanto antes. – Attad entregou a mensagem ao general Kregg, que se retirou discretamente em seguida. Sem qualquer alternativa, Attad se voltou para a mulher. – Rodden e Layla conhecem a proibição. – Na verdade, suas veias pulsavam pela petulância do filho. Fugir feito um ladrão… Quantos homens adicionais o Governador iria exigir em troca dessa vez? – Vá para casa, senhora. Preciso me apressar com os meus afazeres.
Attad já se virava quando a avó de Layla segurou-lhe o braço.
– O senhor jura por Ragnen não descansar enquanto não os trouxer de volta, jura?
– Farei todo o possível – Com um solavanco, Attad se desvencilhou da audácia. Com quem aquela mulher pensava estar lidando? – Agora vá para casa, senão… – Ele impediu que suas palavras ganhassem vida, até porque entendia a angustia daquela mulher, mas ela pareceu compreender mal o Attad lhe dizia. A princípio ela fechou o semblante, mas, logo depois, esticou os lábios num sorriso impertinente e começou a rir. Attad agarrou-se ao seu lenço e o apertou com força. – Posso saber onde está a graça?
A mulher elevou a gargalhada.
– O Senhor Grão-General pode não se lembrar de mim, mas eu o conheço. E como o conheço, meu senhor.
– De que diabos você está falando? – Ainda mando açoitar essa velha.
– Daquele maldito dia, Grão-General. – A mulher secou os olhos com o dorso da mão, encorpando o tom. – Minha filha… Ela… sua esposa… Juntas. Lembra?
Seu coração parecia ter parado naquele momento. Dando um passo atrás, Attad sentiu as costas se eriçarem como tivessem vida própria. Com o sangue gelando, analisou melhor a mulher dos pés à cabeça, agora tendo a impressão que as memórias estivessem explodindo em fagulhas que se encaixavam terrivelmente.
– Você não pode ser…
– A mãe de Dáfini? – disse a mulher, abanando a cabeça. – Sim. Eu mesma, Grão-General.
Attad engoliu em seco. De repente, sentia como se seu cérebro estivesse partindo-se ao meio.
– Raquel, eu não… – Deuses, como aquela mulher tinha envelhecido!
– Se minha memória não me trai, da última vez que o Senhor Grã-General prometeu fazer todo o possível, nunca mais vi minha filha. – Raquel então ergueu um dedo em riste para Attad e avançou um passo. – Portanto, não vá atrás da permissão daquele imprestável que senta no trono deste país. Monte em seu glorioso cavalo e, antes de mais nada, vá atrás da minha neta. Ela é tudo que me resta de Dáfini, e o senhor ainda me deve a sua palavra.
Attad tornou a engolir em seco quando Raquel enfim baixou o braço. Não havia qualquer palavra que pudesse ser contestada. Lembranças e mais lembranças de repente inundavam a sua cabeça. Cerca de dez anos antes daquele dia, Endy e Dáfini retornavam à Fortaleza Montanhosa num comboio de nobres e cavaleiros, quando um grupo de mercenários dissolveu o agrupamento num ataque repentino. Era tudo o que Attad sabia até hoje, e era justamente o que o fazia sentir tanto ódio de si mesmo.
Não pode estar acontecendo de novo!
Pouco tempo depois, Attad deixou o seu palácio e em breve cavalgava a toda pressa em direção ao Palácio Elevado. Uma chuva fria e implacável caía desde a noite anterior, e seus cabelos e barba agora escorriam pesados, mas, naquele momento, ele mal se dava conta. Attad sempre apreciou aquela sensação gelada da chuva batendo no rosto, como fosse um toque renovador dos céus. No entanto, eram outras sensações que ganhavam uma intensidade avassaladora em sua mente. O doce sorriso de Endy, o olhar atrevido dela, os encontros secretos, as emoções vividas. Por mais que o tempo corresse, Attad não a esquecia e jamais queria esquecê-la. Até por isso, seguia em desespero ao encontro de Dáriuss.
– Só encontramos esse punhal, Senhor – esse é o relato do general Kregg, ao me entregar o pequeno punhal de Endy. Como sempre fazia ao final das tardes, o general viera até a minha tenda, naquele acampamento improvisado, reportar as recentes descobertas do andamento das buscas por Endy. É o nonagésimo dia de buscas e esse é o primeiro sinal concreto de minha esposa.
– Onde encontraram? – pergunto.
– Estava com um aldeão local. Ele jura não ter ideia de nada sobre sua esposa e nem do comboio. Mas não soube explicar como veio-lhe à mão uma joia dessa. Nós o prendemos, caso queira interrogá-lo, Senhor.
– E os enviados? Devem ter descoberto algo mais?
Kregg meneia a cabeça, como que desanimado.
– Nada com o qual se possa animar, Senhor.
Quando desapeou em frente ao Palácio Elevado, Attad aguardou que lhe trouxessem panos para secar a indumentária, aproveitando-se para fazer uma prece. Attad implorava pela atenção de uma força maior. Em seu íntimo, sentia um vazio cada vez mais obscuro e denso, como se tudo aquilo fosse uma batalha perdida. Attad não estava certo como lidar com aquela situação, mas precisava descobrir um modo, e rápido.
Os Deuses… Não posso arriscar!
Assim que os panos lhe chegaram, Attad mal se secou e então adentrou o saguão principal. Sem qualquer cerimônia, atravessou o labirinto de corredores que levavam ao Salão da Glória e, chegando lá, para o seu desespero, encontrou Dáriuss na pior condição que podia antever. O Governador estava de pé, ao lado de Évelyn, com Elmon pairando como uma sombra atrás dos dois.
Attad hesitou, mas, por fim, foi direto em Dáriuss.
– Soberano, preciso lhe falar.
– Sim, precisamos e com urgência – foi a resposta de Dáriuss, ao passar olhos de incômodo pela vestimenta molhada de Attad. Ele tinha um espesso papel amarelado na mão. – Grão-Lorde Soranno nos enviou esta carta, escrita pelo próprio Edmurr ao Imperador.
Attad deu uma olhada para o Conselheiro-Mestre Elmon e depois para Évelyn. Eles também o olhavam com um aspecto de horror no semblante. Aquilo não podia ser pior.
– E o que diz?
– Leia. – Dáriuss esticou a carta para Attad, que novamente hesitou.
– Também nos chegou essa convocação, Senhor – nesse instante Kregg me estende a mão, mas não tenho coragem de apanhar aquela convocação. – Ela pede o seu providencial retorno, Senhor.
– Traga-me os enviados em primeiro, general – ordeno a ele, no mesmo tempo em que estudo o punhal de Endy. – Quero lhes interrogar imediatamente. Depois, terei uma conversa mais cautelosa com o tal aldeão.
– Já os interroguei, Senhor – Kregg então pousa cuidadosamente a convocação sobre a mesa. – Garanto que pouco descobriram acerca de sua esposa ou dos mercenários. Já a convocação, dessa vez nos veio do próprio Governador, Senhor.
Meus pensamentos agora estão em disparada. Eu então passo os dedos sobre a lâmina do punhal, na tentativa de controlá-los. Fechando a mão envolta da lâmina, aperto-a, até sentir minha pele se rompendo sob o fio do aço. Só depois disso, apanho a convocação.
– Sabe o que mais detesto em você às vezes, general?
Kregg arregala os olhos ao se retesar.
– Não, Senhor.
– Essa sua maldita vocação de bisbilhotar onde não se deve.
Quando enfim apanhou a carta da mão de Dáriuss, Attad preencheu o salão com um chiado áspero ao desembrulhá-la.
…
Caro Altíssimo Ellian,
As mais recentes notícias remetem a um cenário nunca imaginado. Os Povos-Sem-Rei já povoam considerável parcela dos territórios ao norte. Três de nossos Fortes caíram e as linhas de defesa clamam por reforços. Parte dos campos de alimento foi queimada, e em breve temo precisar interromper a segurança das rotas de ouro e ferro que mantemos entre o Império e Soberannia. Receio não ter como honrar os tratados imperiais por muito mais tempo. Recorro a sua infalível ajuda, pois deter o avanço inimigo torna-se cada dia mais desafiador.
Edmurr.
…
– Parece confirmar os relatos que nos chegam. – Attad devolveu a carta a Dáriuss.
– Vale lembrar que nossos generais não deram ouvidos quando nos vieram preocupações sobre a presença dos Povos-Sem-Rei em Soberannia – pontuou Elmon. – Os sábios bem diriam que os Deuses estão enviando avisos todos os dias. O mal se apressa ao nosso redor, até um cego pode enxergar. O que o Senhor Grão-General tem a explicar sobre tudo isso?
Attad encarou Elmon, evitando, no limite de suas forças, cair naquela armadilha. Sua raiva estava atiçada feito fogo, por certo o Conselheiro-Mestre podia notar. No entanto, Attad já sabia muito bem aonde iria acabar aquela discussão.
– O Imperador pode me punir se não ajudarmos – disse Dáriuss a Attad. – Enfrentar os Povos-Sem-Rei tornou-se vital. Quero que parta ainda hoje para Resplendorr. Reúna dois batalhões com os seus melhores homens, Attad. Ao menos cinco mil homens cada, e mande aprontar outro maior, que deverá ficar de prontidão nas fronteiras com Essência. Quero que me mantenha informado de tudo que ocorrer.
Attad respirou fundo. Aquele definitivamente não era um bom momento.
– Não posso liderar esta missão, Soberano.
– Como? – guinchou o Conselheiro-Mestre de imediato. – Como ousa contrariar uma ordem de seu Soberano?
– Rodden… – replicou Attad, a voz embargada. – Ele partiu para as Terras Proibidas. Preciso alcançá-lo, antes que se distancie demais.
– Ora, ora, ilustre Grão-General – intrometeu-se Évelyn, dirigindo-lhe em anunnako. – O seu maior dever não é o de pôr a vida em risco pela vontade do seu senhor? Não me faz sentido você querer ir à busca de um filho, cuja existência é prova da própria transgressão. O seu senhor demanda sua presteza, e o ilustre Grão-General lhe deve respeito e serventia. Dentre todos os generais de Soberannia, é aquele que melhor conhece as fronteiras de Resplendorr e Profecia. Nada melhor que o filho de Eldric para enfrentar os Povos-Sem-Rei.
– Eldric não era o meu pai – rebateu Attad, também em anunnako. Em seguida, dirigiu-se a Dáriuss em idioma contemporâneo. – Não estou me recusando a cumprir com o meu dever, Soberano. Enviarei os batalhões como me pede, mas me juntarei a eles assim que possível. Jamais conseguiria liderar tal missão em pleno espírito, sabendo que meu filho se pôs a caminho das Terras Proibidas.
– Receio ter passado o tempo de se acostumar com a distância do seu filho – retrucou Elmon. – Rodden é um legítimo defensor das riquezas deste país, não é apenas o seu filho. O Soberano inclusive incumbiu-o da missão rumo às Terras Proibidas. É do seu desejo também desobedecer às leis, Grão-General?
Attad cerrou os punhos.
– Dáriuss o dispensou da missão.
– O Governador Dáriuss o dispensou da missão? – Elmon o corrigiu e então caminhou até ficar de frente para Attad. Por longo instante, encarou-o como que rememorando criteriosamente tudo o que os levara até ali. Pela primeira vez, não estava sorrindo, mas, para Attad, aquele gesto era muito pior do que se estivesse. – Isso não consta nos escritos, e tampouco me veio qualquer renúncia, com a concordância de meu Soberano. O Soberano pode confirmar o que diz nosso digníssimo Senhor Grão-General?
Attad não queria, mas teve de encarar Dáriuss.
O Governador, por sua vez, levantou uma sobrancelha.
O semblante do general Kregg havia assumido um aspecto enigmático a esse tempo, e, sem uma palavra mais, eu me dirijo até a entrada da tenda e puxo o pano para que o general se retire.
Nesse instante, uma mulher de estatura baixa surge à minha frente.
– Essa é Raquel – esclarece Kregg. – Mãe da outra moça.
– Eu lhe ofereço tudo que tenho por minha filha, sor – Raquel suplica ao cair de joelhos perante a mim. – Mas traga minha Dáfini de volta, por favor.
Ainda hoje, a imagem de Raquel de joelhos atormentava Attad, numa mistura de culpa e raiva que se fundiam no peito. No entanto, por mais que quisesse, nunca houve ninguém para lançar às masmorras, ninguém para enforcar, ninguém para esfolar braços ou pernas. Attad sempre soube que não havia maior culpado pelo desaparecimento de sua esposa do que ele próprio.
– Vá para casa – digo, ajudando Raquel a se reerguer. – E lá espere por notícias. Farei todo o possível para encontrar sua filha.
Ao fim de quase cem dias, porém, Attad se viu forçado a suspender as buscas. Sabia-se que mercenários raptavam mulheres em Soberannia para vendê-las como escravas em Resplendorr e Essência, mas, Attad não conseguiu dobrar Petracuss, o então Governador de Soberannia, com essa história. Sem provas, cuspira-lhe Petracuss, eu o proíbo de se aventurar em terras estrangeiras.
Essas lembranças traziam-lhe um grande amargor à alma. E, com a demora na resposta de Dáriuss, Attad começou a temer ainda não ter provado do pior sabor de uma angústia. A essa altura, seu coração trovejava, e, até o ar, antes um pouco esperançoso, agora se assemelhava a uma nuvem de incertezas. Mesmo assim, para cumprir com sua promessa, Attad se via no dever de mais uma vez tentar convencer um Governador a permitir que ele fosse à busca daquilo que mais lhe importava na vida.
De todo modo, não podia ser igual àquela vez. E não iria ser.
Pouco depois, com um passo ressoante, Dáriuss ascendeu o degrau que elevava o seu trono.
– Deixem-me a só com Attad.
Elmon e Évelyn se entreolharam, talvez surpresos, e, de modo hesitante, tomaram o caminho da saída. Com o semblante amarrado, o Governador esperou o lento caminhar do Conselheiro-Mestre para se manifestar.
– Chega de negociações, Attad – disse ele assim que as portas do salão foram fechadas. – Chega de afrontas! Proteja as rotas de Soberannia com o Império. Do contrário, eu o removerei do posto de Grão-General.
– Como…?
– Você me ouviu, Senhor Grão-General. Chega dessa sua teimosia. Atente-se as minhas ordens ou eu lhe tomarei tudo o que conquistou até hoje. Tudo! Sem exceção.
Attad prendeu a respiração por um instante, a ira se apossando de si.
– Faça como lhe parecer melhor, Soberano. Agora, com a sua licença, preciso cuidar de algumas tratativas antes de minha partida. – Attad curvou-se para Dáriuss, deu-lhe as costas e apressou-se no sentido da saída. Não era aquele desfecho que tinha em mente ao adentrar o palácio.
– Não me queira como seu inimigo, Attad.
Attad apertou o passo. Não valia a pena esticar a discussão.
– Diabos! Volte aqui, seu ingrato, maldito! – exaltou-se Dáriuss. – Acha que permitirei que saia do meu castelo impunimente? Assim que cruzar essas portas, eu mandarei prendê-lo e açoitá-lo até a morte. Você e seu filho!
Attad parou pouco antes de alcançar as portas. Seu coração batia forte, e por um instante ele sentiu que o mundo ao redor se remodelava. Inclinando o rosto para baixo, fechou os olhos, pesando o significado das últimas palavras de Dáriuss. As memórias, as promessas, as decisões anteriores… De repente seu ódio não era mais escaldante como nos últimos dias. Agora era frio, gelado como a neve, poderoso como nos velhos tempos. Tudo convergia para aquele momento, como se fosse uma batalha inevitável. Attad não queria, mas não adiantava mais lutar.
Virando-se para o Governador, encheu a mão com o cabo de seu punhal, que logo em seguida se inflamou.
– Nesse caso, Dáriuss, eu o farei entender por que sou um Magnífico.
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Rod abriu os olhos devagar.
Em seguida, pôs-se de pé num salto, brandindo a espada e batendo apressadamente a mão no bolso. Suas pupilas ardiam, com furiosos raios de sol avançando pelas copas das árvores, e, só aos poucos, ele foi compreendendo a terrível realidade. Devia ter chegado ao Corredor da Névoa a uma altura daquelas. Em vez disso, acordara zonzo, sobre uma cama para transporte de enfermos, numa estrada ao centro de um corredor de sequoias retorcidas marchando duas a duas, a perder de vista.
– Como vim parar aqui?
Uma voz grave respondeu:
– Ragnen teve piedade da sua alma, meu rapaz. Por bem, não está adormecido para sempre.
Ao se virar, Rod ficou perplexo com o que via.
– Como vocês chegaram… aqui? – E piscou os olhos, e depois os esfregou com as mãos. Estaria de fato diante de Sor Amirr, Lóriel, um homem alto e forte com desenhos estanhos na cabeça e… Adrienn?
– Já era tempo de acordar, campeão – disse Adrienn, a voz sinistra. – Não aguentava mais ter que arrastá-lo como um morto.
– O que você faz aqui?
– Pensou que eu ficaria naquela torre para sempre, foi, campeão?
Rod engasgou-se com as palavras. O mundo subitamente parecia de ponta cabeça.
– Tente não se preocupar à toa, meu rapaz. – Sor Amirr caminhou ao seu encontro. – Agora nos faça a gentileza de devolver essa espada à bainha.
Rod demorou a assimilar aquele pedido como uma ordem. Por que aquele homem o tratava tão bem? Ao se dar conta de que a espada que segurava era aquela sua, a qual os bandidos haviam-no roubado, ficou ainda mais sem norte. Olhando novamente para Sor Amirr, enfim guardou a espada.
Sor Amirr então sacou um punhal.
– Agradeceria aos Deuses em saber por onde Malgro anda – disse ele e estendeu o punhal para Rod. – Ao menos, agora está acordado. Tome!
Embora hesitante, Rod apanhou o punhal e o retirou da bainha a fim de conferi-lo. A lâmina curta carregava as mesmas inscrições estranhas das quais se recordava, com uma elevação serrilhada ao longo do centro dela. O cabo em forma de cruz trazia a mesma gravura demoníaca na ponta. Embora agora tivesse uma bainha e parecesse maior, aquele punhal parecia o seu, não havia dúvida.
– Obrigado – foi tudo o que Rod conseguiu dizer ante o espanto. Ao detectar uma fragrância adocicada no ar, sentiu-se invadido por uma estranha tranquilidade que há tempos o abandonara. Esquecendo-se de todas as dúvidas e preocupações, Rod devolveu o punhal à bainha e o prendeu ao cinto. Aproximou-se então das brilhantes flores ao pé da estranha árvore, logo ao lado de onde acabara de acordar. Lentamente, encheu os pulmões e saboreou-se daquele cheiro doce, querendo que ele nunca mais se acabasse. Logo em seguida, tentou tocar nas flores, mas, sempre que esticava a mão, elas murchavam, perdendo o brilho.
Um puxão firme no braço tirou Rod daquele transe momentâneo.
– Se eu fosse você, ficaria longe dessas flores – Lóriel o advertiu.
– Como assim? – Rod balançou a cabeça, no esforço para se recobrar por completo. – São apenas flores.
– Não, elas não são apenas flores. E você não inspira confiança para elas. Elas podem querer matá-lo.
Apesar de confuso, os olhos de Rod passaram sobre a herdeira de Resplendorr dos pés à cabeça, sem que ele compreendesse por que fazia aquilo e especialmente daquele jeito, como fosse um qualquer sem escrúpulos. De perto, percebia todo o encanto da mulher de pele clara, olhos cor de mel e cabelos castanho-claros que perigosamente escorregavam até os seios. Lóriel era deslumbrante, não havia como negar, mas Rod não compreendia a própria atitude.
– Essas flores só permitem o toque de quem elas confiam?
– Mais ou menos isso. – Lóriel curvou-se e tocou em uma das flores sem que esta se murchasse. – Elas seduzem as pessoas com um perfume agradável, mas, se se veem em perigo, exalam outro tipo de perfume, bem doce e mortal. – Os movimentos dela eram graciosos, os lábios se curvando numa linha envolvente, penetrante. Muito atraente, disse Rod a si mesmo, ainda mais naquele traje justo de guerreira.
– O que aconteceu comigo? – indagou Rod, balançando a cabeça a fim de voltar a si. Não conseguia compreender por que estava pensando daquele jeito. – Onde me encontraram e por que me carregaram até aqui?
Lóriel o olhou, como que formulando uma resposta.
Foi então que uma voz áspera soou, num idioma hostil e perturbador, quase incompreensível. O sujeito com desenhos na cabeça e pescoço surgiu pouco depois, deitando uma olhadela fria sobre Rod, como se o qualificasse naquele mesmo instante. Que sujeito mais estranho! E, depois de arrancar do caule a flor que Lóriel tocava, o estranho sujeito atirou-a no chão e se afastou.
Adrienn traduziu o rompante.
– Lorde Éveru diz que estamos perdendo muito tempo aqui. Ele não quer esperar por esse tal Malgro que dizem. Quer seguir adiante e descobrir aonde a estrada leva.
Lorde Éveru, pensou Rod. O amigo de meu pai? Rod olhou por um momento para Éveru com a estranha sensação de que os desenhos na cabeça e pescoço dele tinham alterado e então encarou Adrienn sem coragem de lhe dirigir a palavra. Como Adrienn podia conhecer a língua dos deuses ancestrais? Observou o pequeno punho da espada dele, com receio de descobrir como Adrienn a havia recuperado. Sua última lembrança de Adrienn era da cara de ódio dele, pouco antes de Rod roubar-lhe a espada e trancafiá-lo no mirante da Torre dos Ecos. Ainda se arrependerá por tudo que me fez, dissera Adrienn na última ameaça que Rod se recordava. Oh, se vai!
Porém, de algum modo, aquele temor acendeu em Rod outra lembrança.
– Havia uma menina comigo. Saímos da Fortaleza Montanhosa, juntos. Ela é baixinha, um pouco abaixo do meu ombro, o cabelo é escuro e curto, as vestes… de pano. Bem simples.
Sor Amirr dirigiu um olhar conturbado a Rod. Lóriel abanou a cabeça, negando, ao passo que Lorde Éveru deu-lhe as costas. Adrienn se pôs de frente para Rod.
– Você trouxe Layla consigo, campeão? Como um lorde pode trazer uma menina para um lugar desse?
– Alguém, por favor, faça esse bexiguento se calar – revoltou-se Lóriel.
As feições de Adrienn escureceram-se de súbito, e Rod deu um passo atrás. Era como se uma sombra repentina tivesse coberto Adrienn, com uma raiva que Rod nunca vira antes. Lóriel parecia tê-lo ofendido severamente.
– Se acha minhas palavras sem valor, por que então que sua nobrezinha não tapa os malditos ouvidos e cale a merda da boca?
Houve um instante apreensivo enquanto Lóriel e Adrienn travavam olhares. Lóriel bufava, com a mão apertando a veste sobre o pescoço, como se sua ira estivesse prestes a transbordar. Adrienn, por sua vez, agora sorria, com uma maldade fria nos olhos.
– Acalme-se, Lóriel – pediu-lhe Sor Amirr. – Temos que nos manter unidos, pois nem sabemos ao certo onde estamos.
– Preciso saber o que houve comigo – disse Rod, na tentativa de desviar o assunto. Porém, nesse instante, a voz trovejante de Lorde Éveru absorveu a atenção de todos. Sor Amirr foi de imediato ao encontro dele, trocando palavras naquele idioma estranho que Rod não conseguia compreender com exatidão. Relutante, voltou-se para Adrienn.
Ele meneou a cabeça, rindo.
– O grandão acha que esse caminho leva ao coração das Terras Proibidas. – O tom de raiva era nítido, e Rod ficou em séria dúvida se devia contar com Adrienn para saber o que lhe havia acontecido. E Layla? Será que Adrienn sabia onde ela estava?
Ao desviar a atenção de Adrienn, Rod se concentrou no caminho que se estendia à frente, enquanto aguardava o fim da discussão de Sor Amirr e Lorde Éveru. Sentia-se estranho, como se uma enorme fenda obscura estivesse se abrindo no peito.
– Pode caminhar? – indagou-lhe Sor Amirr, ao pousar a mão em seu ombro.
– Acho que sim.
– Então vamos adiante. Conto no caminho tudo que lhe ocorreu.
Houve um instante de hesitação, mas, assim que Lorde Éveru e Sor Amirr reuniram os pertences de jornada e tomaram a dianteira, Lóriel e Adrienn os seguiram. Já Rod andou três passos para então se virar.
Pressentia que algo ruim lhe havia ocorrido e se indagava se Layla não estaria perdida em algum lugar daquela floresta fria e silenciosa. Por mais que se esforçasse, nenhuma imagem da noite anterior acorria-lhe à mente, o que o deixava totalmente confuso. A bem da verdade, Adrienn estava certo. Que tipo de homem traria consigo uma menina como Layla num lugar perigoso como aquele? Layla viera por vontade própria, era verdade, e Rod não sabia se exatamente apreciava a companhia dela. Havia a conhecido pelo seu trabalho de esfíngico e pouco sabia dela. Adrienn devia ter mais razões para se preocupar com ela, afinal de contas, ele, sim, gostava muito dela e por certo a conhecia bem. Mas não era preocupação que Rod via nele. Talvez Layla tivesse regressado à Fortaleza Montanhosa, e Rod apenas não conseguisse se lembrar. Ainda assim, Rod estava dividido. Por um lado, sentia que devia procurar Layla, mas, por outro, ainda não tinha certeza do perigo que o cercava.
Tomara Ragnen queira o bem para aquela menina.
Instantes depois, Rod foi atrás dos demais companheiros de missão.
A fim de evitar Adrienn e Sor Amirr, aproximou-se de Lóriel, e por um longo tempo caminharam, lado a lado, pela estrada ao centro daquele corredor de árvores, em silêncio absoluto.
– Não sei se estou bem – comentou com Lóriel, mas foi Lorde Éveru que o olhou por sobre os ombros. – Tenho medo até de saber o que aconteceu comigo.
Lóriel suspirou. Parecia tensa.
– Estávamos num vilarejo depois Corredor da Névoa quando Amirr o trouxe – ela disse em voz baixa. – Parece que você tomou uma pancada e foi abandonado na floresta, algo assim. Ele não soube explicar se havia mais alguém com você. Talvez seja melhor…
Lóriel se calou de repente, e Rod a encarou, assustando-se ao perceber que Lorde Éveru se avultava bem ao lado. Num tom agressivo, o outro homem bradou com Lóriel, como estivesse lhe dando uma bronca. Sem uma palavra, ela relanceou Rod e depois acelerou, projetando-se em frente. Lorde Éveru então correu e agarrou-a pelo braço, puxando-a com força para trás. Lóriel se contorceu, e Rod olhou na direção de Sor Amirr. O nobre caminhava muito à frente deles.
Rod relutou um instante, mas, em seguida, encheu-se de coragem e deu um empurrão nas costas de Lorde Éveru.
O homem de estranhos símbolos na cabeça soltou Lóriel, talvez pelo susto ou incrédulo pela ousadia de Rod, e o encarou com olhos que latejavam numa fúria incandescente. Já Lóriel, em vez de se afastar, passou a estapear o ombro de Lorde Éveru. Só após cuspir na cara dele que ela avançou ao encontro de Sor Amirr.
Rod também quis disparar adiante, mas, sem saber por que, olhou para Lorde Éveru, congelando ao vislumbrar uma dança daqueles estranhos desenhos no pescoço dele.
Deuses, o que que é isso?
Sempre que comentava sobre o passado, o pai de Rod se referia a Lorde Éveru como um amigo leal a quem ele devia a própria vida. Embora devesse ser mais novo do que seu pai, Lorde Éveru emanava uma imagem anciã de muito temor e prestígio, e era claro que todos ali reconheciam isso. Seu pai, inclusive, uma vez lhe dissera que não era a formidável sabedoria, e, sim, a segurança no semblante austero que o fazia admirar Lorde Éveru, e de certo modo Rod agora compreendia. Éveru é um célebre guerreiro, afirmava seu pai, cujo silêncio esconde poderosas habilidades.
– Um conselho, garoto – dessa vez, Lorde Éveru entoou no idioma de Rod. – Mantenha-se longe dessa menina.
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Um vento gélido e insistente golpeava os cavaleiros quando Attad de súbito freou a montaria.
Havia cruzado dezenas de vezes aquela floresta, mas sempre que observava o arco de pedra demarcando o início das Terras Proibidas, Attad se lembrava com certo receio da frieza fantasmagórica que habitava aquele lugar. Uma parada mal calculada podia arruinar suas pretensões, ele avaliava, no entanto, sob o brilho fosco das estrelas despontando no céu, e cercado pelo perfume soturno que preenchia o ar, o nervosismo e o cansaço faziam com que seus músculos desejassem algum descanso.
– Acamparemos aqui essa noite – determinou aos dois soldados que o acompanhavam. Ao desmontar, Attad levou a montaria para baixo de um jovem olmo nodoso e amarrou o animal ao tronco. Girando a cabeça, perscrutou a região. O silêncio, de tão denso e profundo, enchia-o de suspeitas. – Deve haver draconianos pela região. Avaliem as redondezas.
Os soldados assentiram. Não eram seus soldados, mas homens que se diziam leais ao general Kregg. Apesar de perigoso, Attad preferia assim. Não queria ninguém que conhecesse por perto.
Assim que os soldados se distanciaram para o dever, Attad puxou um fruto-de-mago do bolso e o engoliu sem mastigar. Depois, desprendeu a espada do cinto, retirou-a da bainha e contemplou o fio como de costume. Devolvendo-a à sua proteção, recostou-a cuidadosamente ao pé de uma árvore e alargou o peitoral. Inspirou então a brisa úmida que soprava das entranhas daquele vasto mundo sombrio e desprendeu a luneta do cinto, mantendo o punhal consigo. Attad desejava se esquecer dos últimos acontecimentos. Queria um pouco de paz. Em seguida, caiu sobre a rocha em frente ao arco de pedra. Após um instante de hesitação, desatou o lenço de seu punho e enterrou a cabeça nele, começando uma prece.
Attad rogava às forças superiores para que seu plano se desenvolvesse sem qualquer imprevisto. Esperava que seus aliados compreendessem sua ordem e temia descobrir a razão de Amirr ter envolvido Rodden naquela trama. Sua maior esperança era alcançar o filho a tempo de se juntar ao batalhão que marchava para Resplendorr, antes que seus homens cruzassem as fronteiras de Soberannia. Até porque, depois disso, ele e Rodden iriam desafiar o destino e quem sabe até a ira dos Deuses. Endy… não foi isso que planejei.
Uma voz familiar arrancou-o de suas orações.
– Uma espada tão bela como essa não devia ficar fora do alcance de seu dono.
Attad se levantou num pulo.
– O que você faz aqui?
– Alegro-me que ainda se lembra de mim, viu. – Naréss atirou um punhado de galhos e toras no chão e se abaixou. – Assim, dispensamos novas apresentações.
Attad firmou os pés, arqueando o corpo.
– Sabe, gostaria de entender por que mandou seus homens à frente e agora segue com esses paspalhos. Era a cabeça de quem naquele saco, Grão-General?
– Não se mova, nem mais um passo!
– Pareço um homem perigoso, Grão-General? – Naréss se pôs de pé, espiando a floresta com ar de desinteresse. A aparência era de um homem de média estatura, com vestes de couro simples, cabelos castanhos ondulados. Não remetia a um nobre, porém a origem era longeva, de uma das raças mais antigas e temidas do mundo antigo. – Apenas gostaria que me respondesse ao menos uma vez. Isso já me basta. Podia começar dizendo por que me enganou. Eu lhe digo que há traidores ao seu redor e o senhor me toma o punhal e me faz acender em chamas?! Aquele punhal era nosso, não, um dos seus.
– Eu nunca o enganei, Naréss – Attad deu uma olhada para a espada recostada na árvore. Apenas cinco passos de distância. – O que você faz atrás de mim?
– Ah, sim… Muito pertinente essa sua pergunta. – Naréss baixou a cabeça e deu uma risadinha de nítida raiva reprimida. – Embora não queira a minha ajuda, ouvi um sussurro dando conta de que o Necromante visitava essa região. Como não se pode confiar em homem algum nesses tempos que seguem, decidi conferir por mim mesmo. – Ele então se abaixou, passando a agrupar a madeira que recolhera. – Também ouvi que buscava se encontrar com os seus Deuses antes da guerra, Grão-General. É por isso que deseja impedir que seu filho adentre as Ruínas? Fiquei sabendo que nenhum mago em sã consciência pode se apresentar ao Rei sem Rosto. Verdade?
– Isso não é da sua conta.
– Ah… esqueci que seu filho ainda não foi iniciado. Mas ele já devia saber que não é um momento oportuno para romper com as leis divinas. Especialmente se o senhor seu pai decidir renunciar à sua posição. Sabe, ouvi dizer que os seus Deuses não gostam de magos revoltosos e nem de herdeiros. E agora que todos se dão conta de que Lúciann fala sério, o Senhor Grão-General devia pensar melhor no está fazendo. Os seus Deuses não costumam perdoar, se é que ouvi bem.
– Os Deuses irão me ouvir de um modo ou de outro, Naréss. Já Lúciann é um louco. Não passa de nada além disso.
– Talvez seja mesmo… – Naréss puxou uma faca e descascou um graveto com espinhos. Só então voltou a reunir a lenha. – Mas pelo menos Lúciann é um louco que visa trazer de volta uma criatura a quem os seus Deuses temem de toda força. – Ele parou e deu outra risadinha no mesmo tempo em que meneava a cabeça. – Mas o que mais me intriga é o que Eldric descobriu que fez Lúciann agir assim, tão… feito um louco. Será que ele enfim descobriu que o temido Mavaro não está aprisionado? Ou será que ele descobriu que é a Ordem remanescente em Antares que protege a localização do Necronómicon, e que o Necronómicon, esse, sim, através da pessoa certa, com os artefatos certos, pode revelar algumas coisinhas bem interessantes sobre a história desses seus tais Deuses com esse temido Mavaro?
Attad retesou-se.
– O que você disse?
Naréss abriu um sorriso audacioso.
– Ah, Grão-General, o senhor nem imagina o quanto está sendo enganado. Parece que apenas você não deseja essa guerra. Eu sei de tamanhos acontecimentos que o deixariam de joelhos. Sei inclusive que carrega algo que não lhe pertence.
– Esse punhal nunca foi seu.
– Não me refiro ao punhal, Senhor Grão-General – disse Naréss, a voz agora irritada. – Você me fez um grande favor naquela noite, viu. Embora eu não seja um ladrão ou um assassino como pensa, desde então tenho outro propósito em minha existência. E não gostaria que Lúciann alcançasse o seu objetivo antes que eu consiga o meu. Bem, uma guerra contra os Deuses… sabe muito bem o que isso causaria a todos nós, não sabe? O maior problema é que as joias continuam pairando por aí…
– Maldito seja! – O coração de Attad disparou. Naréss era muito mais perigoso do que acreditava. – Você jurou não conhecer nada sobre os artefatos…
– E o senhor jurou que me libertaria se eu lhe revelasse quem eu era e como o punhal veio a mim, lembra? – O sorriso tornou-se uma afronta dura no rosto de Naréss. O ódio nele não era mais oculto. – A ambição é e sempre foi o grande erro de vocês todos. Mas o seu maior erro sempre foi a arrogância e essa sua crueldade. Os seus Deuses se aproximam a cada dia e ao que tudo indica trazem uma nova destruição junto com eles. Lúciann busca uma destruição ainda maior. Temos que unir esforços, Grão-General, do contrário…
O ruído agitado das folhas engoliu a fala de Naréss. Attad se virou para averiguar. Tratava-se dos soldados regressando da ronda.
– Já o tenho sob meu domínio – Attad disse aos soldados, já disparando na direção de sua espada. No entanto, após dois passos, parou e ficou assim por um tempo, petrificado, ao passo que encarava profundas marcas de pegadas no chão. Tanto Naréss quanto sua espada haviam desaparecido.
– Aconteceu alguma coisa, Senhor? – um dos soldados lhe perguntou.
Attad meneou a cabeça lenta e negativamente. Não sabia nem o que pensar. Depois, amarrou rapidamente o lenço de volta ao punho, reapertou o peitoral às pressas e pegou a luneta. Por fim, pediu a espada de um dos soldados.
– Fiquem aqui e armem o acampamento. Se eu não retornar até amanhã de manhã, retornem à Fortaleza Montanhosa.
Attad então partiu atrás de Naréss.
E, através da imensidão de selvas e pântanos que formavam a Terras Proibidas, distanciou-se do arco de pedra, seguindo o rastro de Naréss em uma esticada rápida, porém, cuidadosa.
Hoje eu arranco desse maldito tudo o que ele sabe.
Durante o tempo em que corria, o cântico veloz de uma correnteza o fez sentir falta de um banho quente e perfumado como os seus no final dos dias. Attad sabia que do outro lado do precipício que separava o mundo contemporâneo das Terras Proibidas tudo era diferente. Ali, havia uma floresta sem nome, que se estendia desde o norte de Resplendorr até o sul de Soberannia, como um enorme território de ameaças e alucinações mortais. As Terras Proibidas se tratava de um gigantesco corredor de bosques e pântanos, que abrigava segredos místicos, e que Attad acreditava que o homem contemporâneo jamais devesse conhecê-los. Nas vezes em que cruzou aquela região, sempre seguiu cauteloso pela estrada que saía do Corredor da Névoa, pois era a única que conduzia direto ao coração das Terras Proibidas. Evitava assim os sussurros sedutores que davam conta daquele reino hostil sob a terra. Até por isso, desesperava-se por desconhecer o paradeiro de Rodden.
Aproximando-se da beira de um precipício, os rastros de Naréss desapareceram.
Attad cessou a esticada e, ao passo que recuperava o fôlego, olhou para o horizonte, para aquela esfera escura envolta por uma luz espectral. Em seguida, esmurrou o tronco de um carvalho, na tentativa de controlar o nervosismo. Já deviam estar a caminho de Profecia.
– Tenha calma, Grão-General – a voz de Naréss veio pelas costas de Attad. – Aqui são os domínios dos draconianos, recorda-se? – Assim que Attad se virou, Naréss lhe arremessou a espada. – Devia ter mais cuidado com algo tão valioso como esse.
– O que você quer de mim?
– Se eu fosse você, agora me preocuparia com o que há lá embaixo e não mais comigo, viu?
– Como soube das joias, Naréss? Pra que raios elas servem, afinal? E o punhal? O que ele faz que ainda não sabemos? O que mais Eldric lhe contou?
O silêncio de Naréss era-lhe muito mais revelador. Enfim Attad o havia cercado. Sem mais delongas, avançou nele, agarrando-o firmemente pela nuca, fazendo a garganta do outro homem beijar o aço de seu bracelete.
– Foi você que decapitou Eldric, não foi? Era você o aliado misterioso que o alimentava com conhecimento ancestral, não era?
A princípio, uma feição meio de raiva, meio de deboche se formou no semblante de Naréss. Depois, ele relaxou, tornando-se sóbrio.
– Veja primeiro a emboscada que seu inimigo preparou ali embaixo, Grão-General. Depois tratamos dessas suas dúvidas a meu respeito.
Attad comprimiu os lábios. Continuar com aquele joguinho estúpido ou dar um basta em tudo de uma vez por todas? A bem da verdade, havia muita coisa que precisava entender. As joias, o punhal, Lúciann… Como tudo aquilo se encaixava a ponto de ter custado a cabeça de Eldric? Certamente havia muito mais coisa que Attad desconhecia, e isso não era bom. Especialmente considerando o encontro com os Deuses que vinha arquitetando. No entanto, depois do ocorrido com Dáriuss, já não estava certo se aquele era o melhor jeito de agir.
Ao largar Naréss, Attad voltou-se para o precipício. Cerca de dez passos separavam-no da borda, mas, só de admitir a si mesmo em percorrê-los, seu corpo inteiro estremecia em fúria. Até quando teria de suportar aquele infeliz?
Arrastando-se até a beira, prendeu a espada ao cinto e sacou a luneta.
Seu coração em seguida gelou.
– Seu desgraçado, por que você me trouxe aqui?
– Ainda não percebeu que só quero ajudá-lo, Grão-General? Porque, caso não enxergue, basta mergulhar nas suas sombras pra ver. Foi para aquele lugar, aquele mesmo, ali embaixo, onde o senhor mandou me queimar, que seu filho foi levado, à força.
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Com a noite prestes a cair, Rod e os companheiros de jornada depararam-se com as ruínas de uma pequena fortificação.
– É tempo de uma fogueira – comentou Sor Amirr. – Quem cuida disso?
A pergunta dissolveu-se na névoa que engolia a floresta aos poucos. À beira do cenário decadente, o nobre de Resplendorr mantinha o olhar especulativo num ponto distante, enquanto aguardava um voluntário.
– Eu cuido. – Ao embrenhar-se na mata, Rod tremia de raiva e alívio. Afastar-se de Lorde Éveru e Adrienn era de grande valia. Depois de sua difícil conversa com Sor Amirr, talvez o melhor fosse um pouco de solidão, até para tentar esquecer o pesadelo pelo qual passava.
Como legítimo herdeiro do comando do Forte Norte de Soberannia, Rod não precisava tolerar tamanha ofensa. Na verdade, nem deveria. Seu pai sempre lhe dizia que tão logo alcançasse a idade adulta, Rod iria receber um novo nome e o Norte de Soberannia como recompensa pelos homens que ele cedera àquele país. Tempos atrás, Rod ansiava pela herança jurada para se ver livre de suas obrigações com a guarda do Império e com o próprio pai. Agora, em meio àquela saga pelas Terras Proibidas, temia não poder usufruir de nada que sua herança pudesse lhe proporcionar.
O que foi que eu fiz?
Anos antes de seu nascimento, por motivos que Rod nunca soubera, Soberannia vivenciou a crise mais severa desde a última grande guerra. O Senhor Grão-General Ossani havia sido assassinado, e grande parte do exército soberannês, desertado. Com isso, as tensões entre o então Governador Petracuss e seus oponentes cresciam à medida que aumentavam os rumores de que Essência se preparava para retomar o trono do país que um dia foi seu.
Mas Petracuss contra-atacou. Conseguiu um misterioso acordo com o pai de Rod, o então Regente de Fúria, oferecendo-lhe a posição de Grão-General, além de garantir a seus herdeiros o comando vitalício do precioso Forte Norte de Soberannia. Em troca, Petracuss recebeu duzentos mil homens de Attad, que puseram suas vidas e espadas a serventia dos interesses de Soberannia.
Com o pai de Rod e seu estilo punho de ferro à frente do exército soberannês, as tensões não demoraram a sucumbir, e Petracuss pôde respirar ares menos temerosos. E hoje, até que Rod atingisse a idade adulta, Sor Lokke, a quem o pai de Rodden se referia como um irmão que nunca teve, desdobrava-se em suas funções como capitão da guarda do pai de Rod e o comando do norte de Soberannia.
Mas Lorde Éveru não parecia se importar com o que Rod era, nem com quem poderia vir a se tornar. Ao longo daquele dia, manteve os olhos frios fincados sobre Rod, como se o estivesse vigiando de perto, cada passo seu, cada desvio, cada intensão.
Como eu podia imaginar que roubar um punhal fosse dar em tudo isso?
Depois de tecer um longo caminho através da mata, Rod encontrou uma região com uma vegetação menos densa e repleta de galhadas secas. Aquilo a princípio o congelou, pois o fez se recordar de Layla. Fora num lugar como aquele que eles se conheceram. Pelo que Sor Amirr lhe havia revelado, ela devia ter fugido antes de Rod ser encontrado pelo nobre. Talvez ela tivesse ido atrás de ajuda, foi o que Sor Amirr deduziu. De todas as hipóteses, Rod queria acreditar que ela tivesse regressado à Fortaleza Montanhosa por sua própria escolha. Mas, por que aqueles malfeitores tinham abandonado Rod sem levar nada? Por que Rod não conseguia se recordar direito daquela noite? E se aqueles homens tivessem capturado Layla e a feito prisioneira? Que tipo de horror Layla poderia estar vivendo agora? Rod tinha aflição só de imaginar.
Balançando a cabeça, Rod respirou fundo, no esforço para se livrar daquele redemoinho dentro de si. Como tudo isso pode estar acontecendo? Ao se agachar, galhos agitaram-se nas árvores, soando um farfalhar de folhas logo atrás de onde estava.
Rod se ergueu às pressas, já com a mão na espada. Sabia que cedo ou tarde uma ofensiva de Adrienn viria ao seu encontro, e talvez aquele fosse o melhor momento. Pouco depois, porém, foi Lóriel que se materializou entre a vegetação.
– Importa se eu lhe ajudar?
– O que você está fazendo aqui?
– Não deseja minha companhia? – Lóriel sorriu, e Rod relaxou o corpo. Após um tempo, ela começou a apanhar gravetos do chão.
Rod levou alguns instantes mais para se dedicar a mesma tarefa. Quando começou, evitou se aproximar muito dela.
– Esse ruído metálico… são moedas? – indagou-lhe Lóriel. Aquele tipo inoportuno de pergunta lembrava Layla.
– São as presilhas da minha cota de malha. Elas são bem barulhentas.
– Ah – fez Lóriel com cara de quem não tinha acreditado. – Estive com o seu pai na Cidade das Torres.
– Eu soube. – Era a segunda vez que Rod mentia em tão pouco tempo. Embora não visse alternativa melhor, percebeu-se indo longe demais.
– Ele comentou sobre sua briga com o Conselheiro-Mestre de Soberannia.
Rod parou subitamente com o trabalho.
– Confesso que preferia nunca ter ido àquela cidade – continuou Lóriel.
– Por quê? Aconteceu alguma coisa?
– Seu pai não lhe contou?
Claro que seu pai não tinha contado nada. Se sobre sua discussão com o Conselheiro-Mestre Elmon ele havia comentado com outros, não podia se dizer o mesmo em respeito a compartilhar algo com Rod. Desde o desaparecimento da mãe de Rod que seu pai não compartilhava mais das experiências nos lugares pelos quais se aventurava em missão. A bem da verdade, Rod não sabia se sentia mais falta da mãe ou do pai.
– Vimos uma cabeça – disse Lóriel. – Viva.
– Viva?! Como assim?
Lóriel se abaixou, mas não apanhou graveto algum. Em vez disso, levantou-se depressa, chegando mais perto de Rod.
– Era uma cabeça decepada. Não podia estar viva, mas estava.
– Os essenos decapitaram… na sua frente?
– Não! – Lóriel meneou a cabeça, e Rod deu uma boa olhada no volume de madeira que eles haviam coletado. Não estavam há muito tempo ali, mas talvez o cansaço estivesse inquietando os pensamentos de Lóriel. Precisavam acelerar.
– Os profecianos se referem nos livros a magos Anunnakis que teriam se tornado deuses imortais. – Rod voltou a reunir lenha. – Não sei se é verdade, mas uma amiga me disse isso.
– Aquele homem não era imortal. Seu pai o matou.
Rod parou de súbito e encarou Lóriel.
– Ele era um dos poucos em quem meu pai confiava. – Lóriel agora falava em tom de pesar. – Chamava-se Eldric, um respeitado mestre de Profecia. Ouviu falar?
Rod abanou a cabeça, negando. Eldric?! Será que Lóriel se referia ao homem que criara o pai de Rod? Não podia ser.
– E por que você veio nessa missão? Digo… – Rod freou a fala, buscando refúgio num assunto com maior segurança. Não podia acreditar que seu pai tivera a crueldade de matar o homem que um dia o acolheu. – Por que a enviaram em vez de algum general? Isso tem alguma relação com Sor Amirr?
Aquela pergunta pareceu pegar Lóriel despreparada. Ela endureceu a feição e recomeçou a apanhar lenha como se tivesse sido ofendida. Rod continuou a observá-la, mas naquele momento não a via. Seu pai era um Grão-General a serventia da lei, Rod não era ingênuo de acreditar o contrário. Castigos faziam parte da vida dele, era fato, mas, mesmo assim, era complicado aceitar que ele pudesse ter feito tamanha maldade.
– É que soa estranho um pai enviar a própria filha para as Terras Proibidas – Rod argumentou. – Pensei que tivesse um irmão.
Lóriel então o encarou. Seu semblante agora estava duro como ferro.
– Meu irmão desapareceu há bastante tempo, Rodden.
O olhar que ela lhe dedicava parecia vidro, tão frio e rígido que estava. Rod sentia como se a tivesse ferido seriamente e não conseguia entender a razão. Quando ela retomou o trabalho, Rod continuou a refletir, sem saber como atenuar a grosseria. Meu pai não pode ter feito o que ela falou. Entretanto, assim que o silêncio se tornou incômodo entre os dois, ele se reaproximou dela.
– Você percebeu algo estranho nas tatuagens de Lorde Éveru?
O olhar de Lóriel se estreitou de repente, a expressão de estranheza.
– O quê?
– Não sei explicar. Elas às vezes… parecem…
– Agora que é um de nós e sabe quem somos, Rodden, você não devia ter medo de Lorde Éveru.
– Eu não tenho medo dele.
– Lorde Éveru gosta de manipular todos ao redor. Todos! Sem exceção. – Lóriel suspirou forte. Havia agora uma sombra de rancor no rosto dela. – Meu pai nunca confiou nele, e você devia fazer o mesmo.
– Eu não tenho medo dele, Lóriel – repetiu Rod, sentindo que não era convincente. – O que você viu de manhã…
Foi então que Lóriel gesticulou para Rod se calar.
– Ouviu isso?
Rod fez que não com a cabeça. Não tinha medo de Lorde Éveru. Nem de nada e de ninguém dali. Será que mais alguém pensava como Lóriel?
De repente, Lóriel agarrou o braço de Rod.
– Escute!
Demorou, mas dessa vez Rod ouviu. Eram passos esmagando folhas secas. Não pareciam passadas duras de um homem, mas suaves, como de uma fera.
Rod girou sobre os pés.
Capturou um movimento. Uma sombra pálida movendo-se entre as árvores.
Àquela altura, a névoa densa havia se assentado sobre a floresta, e ele se via sem raciocínio para agir. As únicas imagens que lhe vinham à cabeça eram a de seu pai com uma espada ensanguentada e a de Layla correndo pela floresta. Aquela situação fugia totalmente ao seu controle. Rod não sabia por quê, mas sentia um tipo de paralisia, como se uma força tentasse dominar suas ações, impedindo-o de reagir.
– O que faremos? – Lóriel parecia em pânico. Ela voltou a se segurar em Rod.
Rod não soube o que responder.
A sombra então avançou.
– Rodden… Lóriel… – esbravejou Adrienn. – Onde vocês estão?
Instantes depois, Lóriel se soltou de Rod e se distanciou rapidamente. Já Rod quis recomeçar a agrupar mais lenha, mas não conseguia. Sentia-se horrorizado, com ódio de si mesmo. Nem a espada eu cheguei a sacar. O que Lóriel pensaria dele dali por diante?
Não demorou muito, e Adrienn emergiu da névoa.
– Por Ragnen, ficaram surdos, foi? Deixem isso aí e venham comigo, agora!
– Não apanhamos lenha suficiente – retrucou Rod.
– Não haverá mais fogueira, campeão. – Com um tapa, Adrienn derrubou a lenha das mãos de Lóriel e avançou no braço de Rod. – Estamos em perigo!
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Attad infelizmente conhecia muito bem aquele vilarejo.
Por isso, avançava à espreita, em meio à penumbra e ao aroma encorpado de fumaça, a fim de investigar o lugar, torcendo para encontrar Rodden o mais depressa possível. Ao se aproximar a uma distância a qual conseguia ter boa visão, protegeu-se atrás do tronco de um olmo e sacou a luneta.
Preguiçosas nuvens cinzentas se desprendiam dos telhados, e fogueiras ardiam em cantos solitários, irrompendo as trevas. O lugar ainda se parecia com os vilarejos de Soberannia. Uma rua ampla cortava-o de ponta a ponta, com duas colunas de casas e pequenas construções prosseguindo abertamente até o fim da rua, umas em frente às outras. No entanto, este vilarejo enchia-lhe o estômago de pavor.
Attad guardou a luneta e, quando saiu detrás do olmo, correu até alcançar a casa que julgou ser a mais distante do centro. Seu tempo era curto, sabia, mas não queria se precipitar. Depois de esfregar os olhos para conter a ardência, avistou um corpo ao lado de uma carroça. Chegando nele, agachou-se e espreitou-o com atenção redobrada.
De longe, lembrava um pouco Rodden, no entanto, de perto, Attad conseguiu distinguir um jovem, com pouco mais de vinte anos talvez, cuja veste clara cintilava num vermelho fresco de sangue. Um dos braços se contorcia num ângulo duro de encarar, mas as pernas e o tronco pareciam intactos. Não fossem os vermes brotando da boca, Attad juraria que o jovem pudesse estar repousando em profundo sono.
Deuses, como era novo!
Um súbito movimento fez Attad erguer a cabeça e forçar a vista através da noite. Duas sombras sorrateiras se aproximavam.
Levantou-se então num pulo e por reflexo levou a mão à bainha, mas preferiu não sacar a espada. Dando um passo atrás, firmou as pernas. O cansaço dos últimos dias parecia pressionar sua mente.
A dez passos, as sombras pararam. Tratava-se de duas pessoas altas, magras, vestidas com manto rubro dos pés à cabeça. Brandiam longas espadas e não produziam qualquer barulho. Na verdade, ao logo de todo o trajeto até Attad os dois sujeitos não fizeram um ruído sequer. Eram como criaturas saídas do fogo, mas tudo neles lembrava o frio.
Baixando os olhos, Attad espiou uma vez mais o jovem que jazia aos seus pés. Desejava pensar o mínimo no que havia ocorrido ali, mas seus pensamentos continuavam em disparada.
– Por que fizeram isso com ele?
Os estranhos não responderam. Um deles deslizou para frente.
Attad não esperava. Mesmo assim, abriu os braços e moveu-se de lado. O estranho trocou a espada de mão, e o metal tremulou no ar como fosse coisa viva. Apesar das sombras, não parecia forja humana. Sua lâmina resplandecia num tom azulado, mas com uma robustez semelhante às armas a serviço dos grão-mestres de Profecia. O estranho ergueu a espada e ameaçou atacar.
Attad inclinou o tronco para trás, mantendo-se em linha. A espada então veio pelo alto, e Attad pulou de lado. Um uivo metálico em seguida se misturou à melodia das chamas, e Attad se deslocou para a direita, contornando a carroça. O estranho o acompanhou. Recuando, Attad se esquivou da estocada vinda pelo escuro, e o estranho estendeu o braço na horizontal, mas outra vez não o alcançou. No golpe seguinte, Attad moveu-se rápido, de lado e, tão logo a espada inimiga atingiu a carroça, avançou.
Seu cotovelo encontrou em cheio o nariz do outro homem, que cambaleou para trás, largando a espada, quase caindo. Com outro passo à frente, Attad levantou o pé, afundando-o no estômago do rival, fazendo-o se dobrar. Queria acertar-lhe por entre as pernas, mas mesmo assim o outro homem se abaixou, contorcendo-se pelo golpe. Então, com um soco de baixo para cima, Attad acertou-lhe o queixo com força.
Foi nesse instante que outro brilho azulado bebericou sua vista. Dando um salto para o lado, Attad acompanhou o trajeto da lâmina inimiga, até que ela arruinasse o tórax do homem que Attad acabara de derrubar.
Um se foi, ponderou Attad. O outro, no entanto, agora fugia em disparada.
Attad esperou o fugitivo dobrar a esquerda para passar a mão no rosto e conferir o líquido viscoso que resfriara sua pele. Cheirava a sangue, mas era gelado e transmitia-lhe uma sensação amarga ao tocar à língua.
Foi então avaliar o adversário caído.
Com dois pontapés, quis se certificar de que o outro homem estivesse de fato entregue ao sono eterno. A espada havia atravessado o peito dele, na altura do coração, mas não fora capaz de matá-lo. A criatura ainda agonizava.
Abaixando-se, Attad estudou a veste vermelha. Era um manto espesso, quem sabe feito da couraça de um raro animal, incomum aos tempos contemporâneos. Ao empurrar a beirada do capuz para trás, teve um sobressalto. Uma grossa linha preta costurava os olhos e a boca, e a cabeça estava friamente escalpelada. Os traços delicados se assemelhavam aos de uma bela mulher, mas as deformações no rosto não permitiam a Attad possuir total certeza.
Ouviu então um grito.
Attad girou a cabeça e em seguida olhou novamente para a criatura caída que lutava para respirar. Desejava que aquilo não tivesse ocorrido. Logo depois, com cautela, ergueu-se e seguiu em direção ao chamado de desespero.
Preferiu, porém, um caminho diferente do fugitivo.
A passos cautelosos, contornou a casa próxima de si e avançou, forçando-se a ignorar um odor insuportável de sangue. Ao avistar uma construção parecida com um depósito, suas mãos voltaram a formigar. Era um lugar grande, sem janelas. De dentro, escapava uma luz fria e tênue pelo telhado pontiagudo, que transmitia a impressão de elevar o topo do depósito a uma altura muito perigosa do chão.
Com um súbito tremor, Attad parou e sacou a luneta. Havia prometido a si mesmo nunca mais escalar nada mais alto do que a própria altura e agora temia ter de quebrar a promessa. Certo dia, Attad precisou subir aos telhados do Palácio das Grandes Muralhas para alcançar o quarto de Endy. Naquela ocasião, não era noite como agora, e tudo corria conforme esperado, até Attad chegar à beira do vão que se abria até a torre de Endy.
Attad olhara para a rua deserta lá embaixo e em seguida havia recuado até a gárgula no centro do telhado. Segurando-se nela, focou-se na varanda dos aposentos de Endy com o coração aos pulos. Estava decidido a declarar o seu amor ou até tomá-la naquele dia. Na verdade, não sabia nem o que iria falar ou fazer. Ao soltar a gárgula, desceu correndo até a borda do telhado e saltou.
Um vento cortante trespassara-lhe o rosto, e Attad foi bater no íngreme telhado da torre de Endy. Em desespero, agarrou-se às pedras, tentando içar o corpo, mas seus dedos escorregaram, e de repente Attad se viu deslizando, escorregando rápido, cada vez mais depressa. Suas pernas então flutuaram, e logo seu peito cruzou o beiral, o patamar do telhado passando diante dos olhos. Com as pontas dos dedos, agarrou-se ao beiral, mas seus dedos fraquejaram, e de novo Attad caiu.
O aposento de Endy correra veloz para cima, e uma sombra se moveu rapidamente lá dentro. Attad esticou as mãos de qualquer jeito e agarrou-se ao parapeito da varanda com toda a força que possuía. Não queria que Endy o visse naquela situação.
Com os dedos voltando a deslizar, a esperança o abandonou, no entanto, antes de cair, uma mão rude fechou-se em seu punho.
Com o espírito gelado, ergueu a cabeça.
Amirr o fulminava, o semblante totalmente incrédulo.
– Não é esse o modo que imaginei terminar nossa conversa, Attad.
Suspenso pela mão do maior rival, o corpo de Attad tremia.
De volta ao presente, Attad balançou a cabeça e devolveu a luneta ao cinto. Tinha ódio do resto daquela memória e preferia não lhe dar vida naquele momento. Esgueirando-se pelas sombras, avançou até o depósito.
Ao detectar um movimento ali dentro, correu para trás do lugar e por longo tempo ficou quieto, estático, inerte como estátua. Por fim, encostou o ouvido à fria parede de pedra, mas não ouviu ruído algum.
Tateou então a parede, até que um sopro úmido atravessasse as pontas dos dedos.
Com cuidado, aproximou o olho da estreita fenda.
A imagem, a princípio, estava turva, mas aos poucos Attad a foi decifrando. Dois sujeitos de manto rubro cercavam uma carroça de prisioneiros, com algo se movendo entre as grades. No canto, havia pessoas com vendas e mordaças e um terceiro inimigo com uma lança na mão. Attad perguntou a si mesmo se Rodden era uma daquelas pessoas. Podia pressentir uma tensão sobrenatural pairando naquele lugar, mas não conseguia ouvir vozes, nem gemidos. No lado oposto dos reféns, densas vigas de madeira erguiam-se até o telhado.
Avistou também um quarto sujeito.
Quando corria os olhos por ele, suas mãos formigaram de tal modo que o obrigou a se afastar da parede e espiar as mãos. Attad nunca sentira algo parecido. Não precisava nem recorrer às sombras. Agora tinha plena ciência do que estava prestes a enfrentar.
Pouco depois, desprendeu o cinto e, com cautela, descalçou as botas e as luvas metálicas. Brandiu o punhal escondido debaixo da indumentária e mordeu-o, praguejando a si mesmo por aquele insuportável odor de sangue. Só então começou a escalar o depósito.
O vento agitava o saiote da armadura como uma criança atrevida, mas Attad evitava pensar no barulho.
de Isso não podia estar acontecendo, não podia!
Precisava descobrir o mais rápido possível se Rodden era um dos reféns. Eles tinham de partir o quanto antes, e Attad temia não poder honrar com a vida de todos do vilarejo. Com o sabor frio do metal na boca, foi agarrando-se aos espaços quase imperceptíveis entre as pedras e içando o corpo acima.
Então, algo pegajoso moveu-se sobre a mão ferida, que em breve ardeu.
Com cuidado, pendeu-se de lado, sustentando-se sobre um pé enfiado em um vão escorregadio. Tentou avaliar a mão, mas a escuridão o impediu de visualizá-la com clareza. Inclinando-se para o outro lado, tornou a escalar.
Quando alcançou o beiral no topo, o odor de sangue se intensificou, e Attad precisou massagear a mão. Depois, pulou para cima do telhado e equilibrou-se, a tempo de evitar a queda. Ainda com o punhal entre os dentes, moveu-se de uma extremidade a outra do telhado, encontrando uma abertura.
O fedor de sangue tornou-se penetrante.
Attad olhou ao redor. Suas veias gelaram de imediato.
Por um instante até quis desviar os olhos e poupar as lembranças daquele horror, mas uma parte sua já se dava conta do que estava acontecendo. Nem em seus piores pesadelos algo parecido ocorria. Um amontoado de corpos ensanguentados esparramava-se logo abaixo de si. Havia tido um massacre naquele vilarejo, era evidente, e Attad temia ter de aceitar a razão.
Desviando o olhar, ajeitou-se a fim de deixar a abertura no telhado rente ao peito. Bem devagar, alçou uma perna para dentro do depósito e logo depois a cabeça, que atingiu topo da abertura. Quando pousou o pé no patamar, a madeira rangeu, e Attad teve de esperar pelo uivo dos ventos para guiar o restante do corpo para dentro. Levando a mão à região da pancada, esfregou-a rapidamente ali.
Seus dedos voltaram empapados de sangue.
Mordendo o punhal com mais força, avançou até o corrimão que se estendia ao longo do patamar. Cautelosamente, passou por baixo dele e abraçou-se à viga que se projetava até o chão. Olhou para baixo. Que os Deuses me deem força!
Então saltou.
Logo na queda, afundou um cotovelo no crânio de um dos assassinos e em seguida atirou o punhal na garganta do segundo oponente. No momento seguinte, correu, apanhou o punhal de volta e, após arruinar o pescoço do oponente, posicionou-se para enfrentar o sujeito com a lança.
O outro homem demorou um instante para tentar uma cutilada, da qual Attad se esquivou. No segundo ataque, seu punhal caiu, e Attad precisou segurar com ambas as mãos a lança inimiga, empurrando-a e puxando-a com força, numa feroz disputa com o adversário pelo domínio da arma. Ainda assim, seus olhos passaram pelos reféns.
Havia ao menos dez, todos de idade avançada.
Rodden não se encontrava entre eles.
Infernos!
Então, com um solavanco, Attad puxou a haste da lança para baixo, atacando ao mesmo tempo o adversário com o ombro. Com o impacto, o assassino foi para trás e, ao se desequilibrar, caiu no chão. Depois disso, levantou-se e disparou em direção à saída.
Sem hesitar, Attad ajeitou a lança ao punho e a arremessou. Tão logo a arma atravessou as costas do fugitivo, Attad apanhou o punhal do chão e, levando a mão à região dolorida na cabeça, pôs-se de frente para o seu verdadeiro adversário.
– Renda-se, demônio.
Diferente dos comparsas, este outro vestia um manto escuro da cabeça aos pés. Era mais alto e também escondia o rosto debaixo de um capuz, mas nele se percebia aquelas ondulações brancas que se moviam sobre as feições ocultas. Continuava em pé, imóvel feito gelo, ao lado da carroça para prisioneiros, onde uma mulher de veste suja se encolhia.
– Não falarei outra vez, demônio. Renda-se ou do contrário…
– Não pode salvá-los, criatura usurpadora – o Necromante retrucou. – Seu tempo é curto demais para isso.
Fugia às suas pretensões encontrar o Necromante, ainda mais naquela situação. Attad sabia que aquele demônio possuía diversas habilidades, entre elas a capacidade de mudar de aparência e voz, sem a necessidade de qualquer ritual. E assim, de tempos em tempos, disfarçado de viajante, ele vagava de cidade em cidade, conquistando a confiança dos moradores e convencendo-os a se unirem a sua comunidade de mistérios e adorações sombrias, em troca de eterna proteção.
Para Attad, no entanto, o Necromante aparecia em sua forma mais perigosa e genuína. Isso não é bom sinal.
Uma estranha movimentação entre os reféns chamou sua atenção.
Attad inclinou levemente o rosto, sem perder o Necromante de vista. A princípio, não reconheceu os acenos, mas, logo depois, um lampejo de lembrança acendeu-se em seu cérebro.
– Layla?! – Sim, era ela, a menina que havia desaparecido com Rodden. Achava-se em meio aos reféns, mas não estava amordaça ou amarrada como os outros. – E Rodden…? Onde ele está?
Foi o Necromante que respondeu:
– Seu filho segue ao encontro das forças que regem as Ruínas, muito longe do seu alcance. – A voz do demônio soava cortante como faca. E, apesar das fogueiras nos cantos do depósito, havia agora uma sombra em torno dele que não deixava a luz tocar em seu manto.
– Não o desafie. – A advertência veio de dentro da jaula dessa vez. – Por favor!
Attad perscrutou a mulher mantida prisioneira. Dor e sofrimento povoam-lhe o semblante, e nela era nítido um vislumbre sombrio contornando-a por inteiro. Uma energia bastante incomum para uma mulher, pensou Attad. Por que diabos o Necromante fazia aquela mulher prisioneira?
– O que sabe sobre meu filho, demônio? – Attad devolveu o olhar ao Necromante, apertando o punhal com força. Não parava de perguntar a si mesmo se devia atacá-lo ou esperar pelo ataque.
As mãos do Necromante então emergiram das mangas. Dedos finos e longos abriram-se e fecharam-se como treliças de ferro, e a boca, enfestada de dentes pontiagudos, revelou-se através das sombras.
– Fuja enquanto pode – a mulher enjaulada o preveniu. – Você não tem ideia do que ele é capaz.
Attad deu um passo para o lado.
O capuz o seguiu.
– Liberte a moça, demônio – exigiu Attad. Como poderia surpreender uma criatura repleta de poderes sem colocar a vida de ninguém ali em risco? – Assim evitamos um duelo.
O Necromante, porém, arrancou a espada da bainha, e de repente o ar pesou nos pulmões de Attad. Os reféns precisavam fugir.
Attad se virou para lhes dar a ordem. Deparou-se com os três sujeitos que acreditava ter ferido, todos de pé.
– Não percebe, criatura usurpadora? Novamente chegou tarde. – O Necromante então abriu os braços, e sombras emergiram dele como fossem asas disformes, tornando-o ainda maior.
Attad segurou o punho da espada por um instante, mas não a sacou. Arqueando o corpo, foi recuando, no tempo em que os comparsas do demônio se encaminhavam em direção ao mestre deles, ao centro das sombras. E, à medida que mergulhavam para dentro das sombras, eles desapareciam, e Attad perguntava a si mesmo se devia permitir aquela fuga. Tão logo o último desapareceu, o Necromante abraçou a si mesmo e ergueu o capuz para o alto.
Gritos sobrenaturais de repente inundaram o depósito. O odor de sangue se intensificou, e Layla correu para trás de Attad.
Quando abraçou a menina, Attad não sabia ao certo em que focar a atenção. Olhou a princípio para os reféns. Como iria proteger aquelas pessoas? Como acharia Rodden naquela confusão? Voltou-se então para a entrada do depósito. Um aglomerado de pessoas ensanguentadas havia surgido ali.
Attad cada vez mais se via atacado por uma imensa perturbação. Ele tencionou os músculos, mas nada podia fazer. Aquelas pessoas, ou sabe lá o que eram agora, não estavam atrás dele ou de Layla. Na verdade, ordenavam-se para perambular ao encontro do demônio.
– Não permitirei que leve mais ninguém, demônio.
O Necromante riu, e sua risada ecoou tão afiada como uma espada.
– Dei-lhes uma nova chance, conhece bem, criatura usurpadora. E para se verem livres das maldições que em breve chegarão, elas me devem lealdade.
– Por que me atraiu para esse lugar, então? O que quer de mim?
A mulher enjaulada se desesperou.
– Tire-me daqui, tire-me daqui!
– Eles sabem do Necronómicon – disse o Necromante. – Sabem como obter as informações que procuram, só não sabem o quanto isso irá custar a todos se não obtiverem pleno êxito. Felizmente, ainda nem desconfiam.
Attad se retesou.
– Eles?
– Os magos revoltosos, criatura usurpadora, ou devo dizer Herdeiros das Sombras? O que hoje sabem é tanto quanto conhecem os membros de elevado grau entre os Magníficos ou das outras Ordens. Os antigos mistérios não são mais um segredo.
– Impossível – Attad balançou a cabeça. Não estava certo se queria acreditar. – Foi por isso que decapitou Eldric, não foi?
– Não decapitei o seu aliado, criatura. Eles, sim, o decapitaram. E eles já estão entre vocês há tempos. Já até dominam alguns de vocês.
Infelizmente aquilo fazia sentido.
– Eles não podem… Como conseguiram?
– Agora podem. Agora conseguem. E em breve descobrirão muito mais do que imagina – replicou o Necromante, as ondulações da face ainda mais cintilantes. – Sei que planeja correr riscos imensuráveis por sua família. Nós o respeitamos por essa decisão. O meu aviso é que não é hora de encontrá-los. Não é hora de se curvar a eles. É chegada a hora de lutar. Enfrente o destino que se apresenta. Lidere os magos revoltosos a conquistar o conhecimento e sabedoria que lhes falta. Lidere a justiça, e eu o conduzo ao único que pode ajudá-lo com o que mais deseja. Acompanhe-me às minhas sombras pelo menos essa vez. Só assim terá olhos vivos e saberá como lograr êxito em sua maior ambição. E entregue-me essa mulher entre as grades e todos aqueles que eu lhe disser. Esse é o preço pelo que deseja.
Attad olhou para a mulher enjaulada e abraçou Layla com mais força. Suspeitava por que o Necromante desejava um pacto consigo, mas porque pretendia fazer daquela mulher sua prisioneira, Attad temia imaginar.
– Não enxerga, criatura? Os seus Deuses não irão ajudá-lo. Sua transgressão será julgada. A existência de seu filho será cobrada, e haverá dor, haverá choro. Eles veem para impor uma falsa justiça aos erros que julgam amaldiçoar o mundo. É chegado o momento de decidir se irá curvar-se a crueldade novamente. É enfrentá-los ou aceitar a eterna ruína como parte de uma existência que se estende, desonrada e sem paz. A liberdade ou os Deuses, o que vai escolher dessa vez, Attad?
Desde o primeiro rumor do surgimento daquele demônio que Attad estava ciente que se tratava de relatos verdadeiros. Pelo tempo que lhe foi possível, fingiu desacreditar do fato, porque não queria que um grande alarde se espalhasse antes que estivessem preparados. Havia muito a se temer com o surgimento do Necromante, principalmente pelo regresso dele muito antes do se previa, muito antes de estarem totalmente preparados. Aquele não era um bom sinal, ainda mais em meio ao caos que o mundo estava à beira com a chegada dos Deuses. Attad até tinha graves dúvidas sobre qual escolha tomar. Muitas coisas tinham saído de controle, o que deixava sua missão cada vez mais arriscada. Só que pensar em desafiar os Deuses até então era algo inimaginável. Attad contava justamente com o perdão e a ajuda deles.
– Os problemas do mundo não pertencem a mim. – Ainda assim, Attad estava disposto a encarar todos os riscos para reaver tudo o que mais lhe importava. – Estou certo que posso fazê-los me ouvir e perdoar a minha transgressão. Mas posso aceitar o encontro que me oferece, desde que não leve mais ninguém daqui.
– Não faça isso… – gritou a mulher enjaulada. – Não faça isso, não faça isso…
– Os problemas do mundo são mais seus do que se atreve a imaginar, Attad – retrucou o Necromante. – Se estiver me engando, irá se arrepender seriamente. O que me diz, jura por seu verdadeiro nome?
Attad hesitou para responder. Em seguida, afastou Layla de si e fechou os olhos com força.
Ao reabri-los, as chamas de súbito se apagaram. O Necromante e seus seguidores desapareceram.
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A noite tinha engolido a floresta, e Lóriel se sentia tensa e estranhamente cansada. Fazia tempo que Amirr e Lorde Éveru iam à frente, iluminando as trevas com suas tochas vacilantes, cada qual com um saco de pano amarrado às costas, além de suas bolsas com os pertences de viagem.
– Estamos andando há tempos – falou com Rodden, que seguia ao seu lado. Não havia nada que fizesse o garoto desgrudar dela. Seria por causa disso que Amirr não se aproximava tanto dela? – Temos o direito de saber quem nos persegue, não acha? – Lóriel observava o silêncio desnorteante de Amirr e Lorde Éveru, ansiosa por descobrir se o nervosismo da dupla era maior do que imaginava. Havia entre eles uma cumplicidade temerosa, que nem mesmo o denso véu da noite era capaz de ocultar. Exalavam um tipo de tensão que dava ao medo uma fragrância crua, quase palpável.
Depois de Rodden balançar a cabeça em reposta, Éveru retumbou aquele idioma venenoso dele. Lóriel se virou para Rodden, que deu de ombros. Além de ingênuo, era sonso. Olhou para trás, para Adrienn, o bexiguento.
– Ele diz que não há direitos aqui.
Uma pontada de ódio atravessou Lóriel quando Adrienn fez a tradução. Em seguida, ela tropeçou e caiu. Rodden e Adrienn se estranharam para ajudá-la, mas Lóriel empurrou os dois e levantou-se sozinha.
– Tudo bem com vocês? – veio a tardia preocupação de Amirr. Como Lóriel desejava dizer a verdade para aquele cretino.
– Está bem, sim – respondeu Adrienn, dando um empurrão em Rodden, colocando-se ao lado de Lóriel. Assim que ela se afastou, Rodden devolveu o empurrão de Adrienn, e um silêncio expectante se formou entre os dois. Lóriel se pôs a arrumar as vestes, com a raiva retesando os seus lábios. Deu-se conta novamente dos dois quando a mão de Adrienn já estalava na cara de Rodden.
Rodden cambaleou de lado, segurando-se a uma sombra, que na verdade era o tronco de uma árvore. Num impulso que não sabia de onde vinha, Lóriel avançou sobre Adrienn. Contudo, Amirr a segurou firme pelo braço e estendeu a tocha entre Rodden e Adrienn, a tempo de evitar uma confusão maior.
– Que raio está acontecendo aqui?
A princípio não houve respostas. E, enquanto a tocha lambia o rosto desdenhoso de Adrienn, Lóriel teve a sensação de ver um divertimento repugnante nos olhos daquele asqueroso. Rodden por sua vez parecia fumegar.
Amirr então ajeitou a alça do saco preso às costas e aproximou-se de Adrienn, que manteve o silêncio. Nesse instante, Lorde Éveru surgiu como um fantasma ao lado de Rodden. Aquela criatura parecia flutuar, tão silencioso e repentino que era. Com o duvidoso intuito de estudar a pancada, ele clareou com sua tocha o rosto do garoto e jorrou um palavreado que só mesmo Amirr para entender. Era evidente uma precaução diferenciada de Lorde Éveru com aquele garoto.
– Estou plenamente de acordo que não devíamos fomentar tempestades entre nós – posicionou-se assim Amirr. Apesar de a expressão do nobre expelir serenidade, tinha um aspecto irritadiço, como se exigisse de Rodden e Adrienn que não esticassem a confusão. – Deixamos o mal-entendido de lado, o que me dizem?
Adrienn deu de ombros, e Rodden não fez gesto algum.
Lóriel não estava certa se concordava. Por que Amirr agora mal a olhava?
– Precisamos descansar. – Amirr deu duas batidas fortes no braço de Rodden e voltou-se para Lorde Éveru. – Não se pode caminhar a noite toda.
De novo Lorde Éveru cuspiu em idioma antigo para Amirr. Aliás, pelo tom peçonhento e o modo seco que arrumou a alça do saco que carregava, Lóriel deduziu que ele retrucava Amirr com a mesma impaciência que destinava a ela e aos demais.
– O que eles estão discutindo? – Rodden sussurrou para Lóriel, que fez um gesto negativo com a cabeça. Como é que ela podia saber?
Mais uma vez Adrienn se intrometeu.
– Eles falam de um perigo e que precisam se esconder ou fugir, algo assim, foi o que entendi. Falam dum tal impostor.
– Impostor… – Lóriel engasgou-se com a própria voz. – A quem eles se referem?
Adrienn riu.
– Há segredos que nunca devem vir à tona, nobrezinha. – E de repente alteou a voz. – Nossos companheiros guardam um desses e corre para escondê-lo de mim ou de você, quem sabe? O oculto pertence à noite, os antigos já diziam, mas os segredos pertencem aos sábios.
Amirr irritou-se de vez.
– Sei que desejam saber dos nossos temores. Mas peço que confiem na sabedoria de nossas ações. Adrienn provoca mal, muito mal. Ao menos diz bem que nem tudo que conhecemos deve ser compartilhado.
– Eu não disse isso – provocou Adrienn ao encarar Amirr. A essa altura, a testa de Amirr já estava repleto de rugas, como de uma fera irada.
– Temos o direito de saber do perigo que nos espreita – queixou-se Rodden. – Não irei a lugar nenhum sem ter ciência do que fugimos.
Lóriel sentiu um sorriso tocar-lhe os lábios. Até que o garoto não era tão ingênuo e covarde como imaginava. Era atraente, jovem, de expressão arrogante como a do pai, imprudente como criança. Como Lóriel podia aproveitar-se melhor disso?
– Não se ponha em embate tão cedo, meu rapaz – Amirr alertou a Rodden, o tom carregado de uma fúria reprimida. – Atenha-se apenas a sua missão aqui. – Rodden e Amirr se olharam por um momento, mas logo o garoto baixou os olhos, e Amirr compartilhou a conversa com os demais. – Proponho que aproveitemos o tempo para descansar. – Ainda assim, ele não dirigia o olhar para Lóriel.
– É dos Draconianos que estamos fugindo? – insistiu Rodden. – Ou é do Necromante como Adrienn afirma?
O ar pesou ainda mais sobre a floresta. Mesmo assim Lóriel não se importou em sorrir para Rodden. Ela jamais imaginou que aquele garoto fosse capaz de tirar Amirr do eixo, ainda mais pelo modo receoso que Rodden costumava a se dirigir a Amirr. E, durante o silêncio que se arrastava, Lóriel ia percebendo a irritação de Amirr e Lorde Éveru tornar-se um rumor solene de dúvida. A tolice ingênua do garoto fazia-lhe merecedor de um carinhoso beijo, mesmo sendo filho de quem era.
– Está bem – Amirr enfim se decidiu. – Já que desejam assim.
Lorde Éveru jorrou toda a sua robustez em seguida, com evidente propósito de censurar Amirr, mas o nobre não se deu por vencido.
– Cedo ou tarde todos lidarão com a verdade – rebateu ele. – Ou acha que se pode cumprir uma missão como esta, com somente alguns sabendo o que acontece?
Após um instante de hesitação, Lorde Éveru se distanciou, e Amirr empurrou a tocha para Adrienn, dando-lhe uma encarada ameaçadora. Logo em seguida, o nobre jogou a bolsa com pertences no chão e desamarrou o saco de pano que carregava às costas. A passos firmes, encaminhou-se até Lorde Éveru e arrancou dele o outro saco. Abaixou-se então e também o abriu. Erguendo-se, agitou-os com raiva.
No instante seguinte, duas cabeças bateram no chão.
– Olhem bem para elas, pois, se essa missão fracassar, este será o destino de todos.
Lóriel se estremeceu ao fitar as cabeças de Eldric e Lorde Malgro, e mais uma vez as memórias da poderosa força que a dominou no Concílio veio-lhe à mente. O receio de reavivar aquelas lembranças e de acreditar no teor perturbador de todas as revelações era enorme, afinal nunca experimentara tamanho poder. Cada vez mais, Lóriel se via atraída por aquele poder e, às vezes, até se pegava com o desejo de atendê-lo.
Mate-os todos, minha criança, todos! Sem exceção.
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– A senhora está encantadora hoje – digo, assim que a encontro nos jardins do Palácio das Grandes Muralhas.
Endy arqueia os lábios num sorriso deslumbrante e então começa a caminhar. Sua boca rosada tem um brilho macio nesse dia, e seus olhos estão tão cintilantes que parecem enfeitiçar os meus. A energia dessa mulher é radiante.
– Não gostaria de me acompanhar, milorde? – ela sugere para a minha surpresa.
– Ir… com a senhora? – Dou um passo à frente, mas paro, meio perdido, hipnotizado pela dança graciosa de seu vestido branco arrastando-se pelo chão. É o último dia da visita oficial a Resplendorr, e Petracuss já havia decretado que regressaríamos a Soberannia naquela mesma tarde. Eu, no entanto, não desejo partir sem me despedir dessa mulher.
– Por favor, milorde, me chame apenas pelo meu nome.
– Claro, claro – fico desconsertado com aquele pedido. – Adoraria que fizesse o mesmo.
– E eu adoraria lhe apresentar os jardins desse palácio. Dizem que sua fonte tem o poder de realizar o maior de todos os seus sonhos.
– Não sei se é possível.
– Aposto que o Governador Petracuss não se importará com um pequeno atraso de seu Grão-General. – Endy me lança uma piscadela, os lábios curvando-se perigosamente. Como eu poderia resistir a tamanho encanto?
Hesitante, eu me aproximo dela. Ela em seguida passa a me analisar, com olhos que agora queimam em castanho mel. Por um longo instante, eles se movem como tivessem o poder de decifrar cada um dos meus segredos. De repente, não sei o que falar e nem o que fazer.
– Conceda-me a honra? – ofereço então o braço a Endy. Meu coração parece palpitar na garganta.
– Parece tenso, milorde. – Ela comenta ao aceitar a cortesia. – Algo o preocupa?
– Não – minto, mas acredito que por uma boa causa. Na verdade, é incrível e ao mesmo tempo arriscado ter aquela mulher ao meu lado, segurando-se a mim com ambas as mãos. – Apenas cansaço.
Então, começamos a caminhar.
– A mim o senhor parece tenso, milorde. – Endy me encara com aquele mesmo olhar travesso que me enfeitiçou desde o nosso primeiro encontro. Apesar de suave, ele se parece com o de uma fera, prestes a capturar sua presa. – Devo me sentir culpada por essa sua tensão, Senhor Grão-General? Confesso que adoraria carregar essa culpa.
– Se assim prefere, sinto-me tenso desde a primeira vez que a vi.
Os lábios de Endy se curvam mais uma vez. Os olhos continuam ardentes, e o cabelo perfumado, deslizando em longas mechas castanhas, harmoniza-se com a leveza de seu corpo. Endy é sem dúvida a mulher mais atraente que conheci, e com isso todos os nobres de Resplendorr concordam. E, nesse momento, sorrindo como uma menina sedutora, ela se faz ainda mais irresistível.
– Aposto que diz isso a todas – ela me diz, ainda sorridente. – Só está sendo gentil.
Como posso me despedir de Endy? Ela havia capturado todo o meu amor e desejo, e a última coisa que quero é escapar dela.
– Seu noivo me disse que se casarão tão logo o tempo frio cesse. Verdade?
– Conheceu meu noivo, milorde?
Engulo em seco, e Endy me atira um olhar estreitado, agora como que sondando as minhas pretensões. Ah, se essa mulher pudesse ler os meus pensamentos…
– Soube que é o homem mais cobiçado de Soberannia. Verdade?
Não consigo conter uma risadinha. E de novo Endy sorri para mim. Dessa vez, no entanto, seu sorriso tem um leve toque de irritação.
– Eu jamais pensaria assim – respondo, mas meu verdadeiro desejo é me declarar para essa mulher. Quero levá-la para Soberannia comigo, eu a quero como minha esposa, mas sei das implicações, tanto para mim como para ela, e a última coisa que quero é estragar o nosso encontro. Se esse for o último momento em que nos vemos, ao menos desejo que seja mágico para ambos.
Aproximando-se da fonte, Endy para e se põe imediatamente de frente para mim. Sua boca de repente assume uma curva insinuante.
– Olhe nos meus olhos, Grão-General.
– Já o faço. – E como eu o fazia. Eles são graciosos, meigos, quentes, mas diziam serem cruéis aos homens enfeitiçados por eles.
– Não assim, milorde. – Com suas mãos delicadas, Endy move o meu rosto até ficar rente ao dela, e tudo ao redor de súbito deixa de existir. Nossos olhares parecem se tocar, e eu começo a achar que aceitar aquele convite não foi uma boa ideia. – Agora, milorde, eu lhe farei uma pergunta e exijo sinceridade.
Prendo o fôlego, desejando ter um fruto-de-mago à mão, para produzir aquela fragrância adocicada na boca que tanto aprecio. Tenho a súbita sensação de que somente Endy e eu habitamos o mundo nesse momento. Minhas emoções entrelaçam-se aos meus desejos, e eu batalho arduamente comigo mesmo, para conter o ímpeto de provar da ternura provocante dessa mulher. Deuses, como eu a quero!
– Você sempre terá tudo que desejar de mim, Endy.
– Sendo assim… – Num gesto gracioso, ela alça os braços ao redor do meu pescoço e se aproxima de mim, chegando perto, muito perto, perigosamente perto. Agora já não sei até quando consigo suportar aquilo. Ao passo que nossos corpos se tocam, eu a seguro pela cintura, e ela olha dentro dos meus olhos, os lábios levemente umedecidos. – O que tanto espera para roubar-me do meu noivo, Grão-General?
Com essa memória, Attad despertou rangendo, arranhando o rosto, urrando de ódio. Um sabor amargo preenchia a garganta, e, dos olhos turvos, lágrimas frias ameaçavam arrebentar. Sozinho, sobre um amontoado de palha dura no chão, remoía-se da dor, da saudade, do arrependimento, à medida que aos poucos decifrava o obscuro recinto cheirando a sangue e fumaça no qual se encontrava. Lá fora, vozes alegres misturavam-se aos berros de pavor que de repente ecoavam em seu cérebro. Attad não desejava acordar daquela lembrança.
Esfregando as mãos no rosto, sentou-se, tentando se recobrar. A julgar pela luminosidade que atravessava as frestas da porta, mais da metade do dia devia ter se passado. Por que você se foi, Endy? Por quê? Por quê? A sensação dolorosa o fazia se recordar que ele não podia se distanciar demais de Rodden, da última memória viva da única mulher que amou. Será que ainda devia sonhar com ela?
A tempestade continuava a rodopiar em sua cabeça, mas Attad forçou-se a enfrentar a realidade. Atento às reações do corpo, pôs-se de pé com cuidado. Temia pontadas provenientes de músculos exauridos, no entanto, exceto pelo sinuoso latejar das têmporas, não tinha o que reclamar. Estava limpo, e até a mão outrora ferida agora estava completamente regenerada, apesar de a pele parecer mais escura que o normal naquela região.
Endy, Endy, Endy…
Attad então segurou os braços e varreu o recinto com os olhos. Para o seu desespero, seu lenço não estava no punho. E, no lugar da poderosa indumentária negra, uma leve veste amarelada sobre a cota de malha protegia-lhe o corpo. O cheiro macio de flores daquela veste ao menos era-lhe agradável.
Eu vou salvar o nosso filho, Endy. Custe o que custar.
Attad ainda estudava a si e o lugar quando pisadas firmes se aproximaram repentinamente da entrada do acanhado recinto.
A princípio, ele não se moveu. Você não devia ter partido sem mim, Endy. Isso não é justo. Por fim, avançou até a porta e a abriu.
A princípio, uma furiosa rajada de sol escureceu sua visão. Quando as vistas regressaram, uma bela mulher havia surgido logo à frente.
– O senhor se sente melhor?
Attad ficou em dúvida se aquela mulher era a mesma que o Necromante mantinha enjaulada. A expressão dela era bem diferente agora. O cabelo escuro, antes desgrenhado, escorregava até os ombros em suaves cachos, e a face estreita e suave, que da última vez parecia densa de horror, havia ganhado um contorno incrivelmente jovial. Sua energia parecia pulsante e um tanto incomum. Encontrava-se limpa, num exuberante vestido esmeralda, o perfume doce a exalar.
– O que houve comigo? – perguntou-lhe Attad.
– O senhor não se lembra?
– Não me lembro de pegar no sono aqui.
– Por Ragnen! – A mulher projetou-se sobre Attad, levando a mão à cabeça dele e em seguida deslizando-a até a região acima da orelha. A dor elevou-se de súbito, mas, por um momento, Attad mal se deu conta. Com o corpo esguio da mulher enroscando ao seu, sentiu-se incapaz de se mover.
– O que você está fazendo?
– Conferindo os pontos. Nem desconfia o trabalho que eles me deram. Não pude usar vermes para conter as infecções e a febre. Tive que usar ervas frescas. São perigosos os vermes na cabeça, e estragariam o cabelo. E os seus lhe caem bem.
Attad podia jurar que suas feições haviam corado. Agarrou então as mãos da mulher e as afastou de si.
Ela o encarou, a boca numa linha reta, indecisa.
– Acho que está tudo no lugar – e se distanciou. Os olhos castanhos da mulher ainda pareciam sorrir para Attad. – Nunca vi ninguém com tamanha coragem como a sua. Como fez para mandá-lo embora?
– Para o quê?
– Deixa pra lá – a mulher cortou-o com um sorriso que lembrava o de Endy. – O importante é que o senhor me libertou daquele monstro, e eu serei sempre grata por isso.
Attad deu uma risadinha involuntária. Novamente sentia-se envergonhado.
– Minhas coisas… havia um lenço em meu punho.
– Mandei que limpassem sua indumentária e lavassem suas vestes e o seu lenço também. E guardei todas as suas coisas, até as que encontraram atrás do depósito. Inclusive aquele seu punhal.
– Ótimo… – Attad nem sequer tinha se lembrado do punhal. – Havia uma menina ontem…
– Layla?
– Sim! Ela mesma. Onde ela está?
– Ela estava comigo ainda há pouco.
– Preciso lhe falar com urgência. – Uma pontada fez Attad levar a mão à cabeça.
A mulher segurou-lhe gentilmente os braços.
– O senhor devia descansar. Fique aqui que eu vou atrás dela e de um pouco de comida para o senhor.
Attad se desvencilhou da mulher e massageou a região dolorida. Então, arrastou-se para fora do recinto, chegando à rua principal do vilarejo. Para a sua surpresa, encontrou o ambiente deserto, tomada por um silêncio sobrenatural.
Depois de Attad gritar duas vezes por Layla, a mulher se aproximou.
– Acho que ela foi atrás de comida. Acordamos todos com fome, hoje. Faz três dias, mas as pessoas ainda estão um pouco assustadas depois de tudo. Aconteceram muitas coisas em tão pouco tempo.
– Três dias… – Attad não podia acreditar naquilo. – Preciso falar com ela agora.
– E o que o senhor deseja com minha filha de tão urgente?
Attad entortou a cabeça.
– Filha?!
– Sim… – A mulher sorriu alegremente. – Minha filha.
Attad precisou de um instante para reordenar os pensamentos. Logo em seguida, revirou as memórias, à procura de informações que nunca achou que teriam valor.
– Qual o seu nome?
– Hummm, já era tempo de saber. – A mulher arqueou os lábios num sorriso ainda mais radiante. – Eu me chamo Dáfini.
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– O senhor está bem?
Attad não sabia dizer quantas vezes tinha ouvido aquela pergunta. Tudo que havia passado e descoberto nos últimos dias se assemelhava a uma profecia trazida pelos mortos, mas até então ele vinha conseguindo se manter firme. O Concílio, as rebeldias, as revelações… Nada o fizera perder o equilíbrio, até se deparar com o nome daquela mulher à sua frente. Seria ela a mesma Dáfini que havia desaparecido com Endy?
Foi nesse instante que o rosto de Layla surgiu debaixo do braço de Dáfini. Rapidamente Attad notou que o cabelo da frágil menina não mais cobria a testa, como da última vez em que Attad a confundiu com um menino. Parecia inclusive mais longo. As vestes, outrora sujas, estavam tão brancas que davam a impressão de cintilar. O olhar agora era suave, os traços da face mais femininos e estreitos, leves, e tudo nela parecia enterrar qualquer suspeita. Layla parecia ter envelhecido anos em poucos dias, mas Attad não tinha cabeça para isso. De fato, Layla era muito parecida com a mulher diante de Attad. Essa mulher é a filha de Raquel!?
– Ele queria muito lhe falar, filha – explicou Dáfini com um gestual calmo, sensual. Além de tudo, também era esfíngica.
– Como você sobreviveu? – A princípio Layla respondeu sua pergunta balançando a cabeça, meio atrapalhada, e logo depois começou a se explicar. Sem saber no que se concentrar direito, Attad perdeu um bom trecho da explicação. Não fora essa e nem para Layla a sua pergunta. – Onde você esteve todo esse tempo?
Layla olhou para Dáfini com uma expressão de quem não estava entendendo, mas, a uma altura dessa, o semblante de Dáfini já tinha se apagado.
– Acho que não é para você a questão, filha.
– Como você… – Attad ia falando, mas as palavras escapavam-lhe à boca. Sua cabeça recomeçara a latejar. – Como você sobreviveu?
Dáfini meneou a cabeça, em silêncio.
Attad agarrou-a pelos braços e a chacoalhou.
– Que diabos aconteceu com vocês duas? Conte-me o que aconteceu com Endy?
Layla então se agitou, e seu alvoroço foi tão acentuado que obrigou Attad a reordenar as estruturas.
– Eles o levaram. – O gestual dela pareceu-lhe um rugido, tão desesperado e tenso que estava. Attad se sentiu envergonhado pelo acesso de fúria e ao mesmo tempo obrigado a desdobrar a mente para conseguir dar a devida dedicação ao que Layla tinha a relatar. Soltando-se de Dáfini, virou-se para a menina.
– Quem levou Rodden, Layla?
Layla não se manifestou num primeiro momento, e Attad percebeu o sangue se alterar. Por um instante, quis explodir novamente, mas, em vez disso, ajoelhou-se diante de Layla e repetiu com calma a pergunta. Lágrimas rolavam pelo rosto da menina.
– Eles o perseguiram, senhor. – Os movimentos de Layla continuavam agitados, o que os tornavam difíceis de serem compreendidos. Devido à rara doença que a menina carregava, suas palavras eram pronunciadas quase que inaudíveis, ancoradas justamente pelos gestos das mãos. – Disseram que iam entregá-lo a um mago das Terras Proibidas. Naréss avisou que era perigoso, mas Rod não quis ouvir.
Attad teve um sobressalto. Naréss…? De repente não sabia como interpretar aquilo e nem exatamente o que podia significar. Entender o desaparecimento Endy era-lhe extremamente importante, mas já não tinha certeza do quanto era naquele momento. Se Dáfini, depois de tanto tempo, encontrava-se viva, por que apenas Endy o destino não quis vê-la a salvo? Elas haviam desaparecido no mesmo comboio, e, ao passo que Dáfini fosse filha de uma aldeã, Endy não era. Era uma legítima herdeira dos poderes místicos de Profecia, alguém que havia conhecido os reais perigos do mundo. Entretanto, conhecer o emaranhado no qual Rodden caíra tornara-se crucial.
– Sabe dizer como Rodden conheceu Naréss?
Layla negou com a cabeça.
– Consegue ao menos detalhar tudo o que ocorreu com você e ele, em cada detalhe? – insistiu Attad.
Layla fez um vago movimento com a cabeça e então desatou a chorar. Attad voltou a olhar para Dáfini. Seu maior desejo era saber o que havia acontecido com Endy, no entanto, era impossível ignorar o rumo perigoso daquela história.
– Acho que seu filho esteve aqui – revelou Dáfini.
– Aquele demônio o levou? – Attad pôs-se rapidamente de pé, mas Dáfini virou o rosto, e um expectante vazio encheu-lhe o cérebro.
– Não… – foi a resposta embargada dela. – Se for quem eu penso, ele e os outros estiveram aqui pouco antes daquela coisa se apresentar como um demônio.
Attad aliviou os pulmões, mas mesmo assim seu espírito continuava gelado. Seu esforço era gigantesco, no máximo de suas forças. Attad não queria alterar o humor. Continuava dividido, perturbado, aterrorizado, mas a cada nova revelação seu temor por Rodden só crescia. Que diabos aquela mulher estava escondendo?
– Há uma pessoa que talvez possa lhe conceder um relato mais preciso – prosseguiu Dáfini. – Ele presenciou fatos que nós duas, não.
Attad detestava aquele tom misterioso.
– Quem é essa pessoa?
Dáfini deu uma olhadela para Layla.
– O nome dele é Amirr – gesticulou Layla com estranha ansiedade.
– Amirr está aqui? – Attad teve outro sobressalto.
Dáfini apontou para uma direção atrás de Attad.
– Última casa, do outro lado da rua.
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Pouco a pouco a jornada pelas Terras Proibidas assumia um padrão mudo e invisível que Rod detestava. Dia sim, dia não, Lorde Éveru e Sor Amirr se afastavam para caçar o alimento que garantia sobrevida aos exauridos guerreiros. Aos fins de tarde, Rod cuidava do fogo que mal vencia o frio que caía às noites. Sempre na retaguarda, Adrienn se esgueirava como uma raposa sorrateira, enquanto, à beira das fogueiras, cuspia hostilidades contra Rod. Já Lóriel havia mudado, e Rod duelava com os próprios pensamentos para entender a razão.
– Que sombra deixa o seu humor ácido, meu jovem? – indagou-lhe Sor Amirr, oferecendo-lhe um pequeno e familiar bago escuro.
Rod meneou a cabeça, negando. Em seguida, ajeitou aquele saco de pano, que agora carregava amarrado às costas, e deu uma olhadela de canto a fim de avistar Lóriel. Desde que Sor Amirr lhes revelou as cabeças de Eldric e Malgro que Lóriel se mantinha afastada. Ela sempre havia mostrado um lado amistoso com Rod, porém, de repente, não procurava mais sua companhia e, por diversas vezes, dava a impressão de querer evitá-lo. Para piorar, ela e Sor Amirr se tornavam mais próximos a cada dia, como se tivessem algum tipo de envolvimento.
– As duas estão bem protegidas? – A indagação de Sor Amirr soou mais como uma advertência do que propriamente uma curiosidade. Mesmo assim, Rod bateu a mão no bolso e assentiu para o nobre, que pelo olhar enviesado não pareceu satisfeito. – Se Malgro estivesse conosco, talvez já tivéssemos alcançado o coração das Terras Proibidas.
Rod se limitou a menear a cabeça. O que fazia Sor Amirr acreditar que ele queria conversar?
– Só há esse caminho para Antares, sor?
– Antares não existe mais, meu jovem. – Sor Amirr deteve a fala por um instante e lançou um olhar especulativo para a floresta. Rod também tinha notado um ruído. – São dois caminhos, na verdade. Lorde Malgro alertava que esse caminho, em que estamos, devia ser evitado a todo custo.
A passos ligeiros, Lóriel passou pelos dois, e Rod estremeceu-se de raiva. Talvez devesse ir até ela e buscar entender o que havia acontecido. Será que fora Sor Amirr quem havia provocado aquela ruptura?
– O senhor sabe quem… – Com uma olhada de canto, Rod indicou o saco que carregava. – Sabe se ainda nos perseguem, sor?
Amirr fez uma careta ressabiada.
– Certa vez, dei a seu pai um precioso ensinamento. Pior do que temer um inimigo, é temer a sua ameaça. Malgro era quem mais conhecia essa região. O que me leva a crer que despertamos a ira de um inimigo discreto, mas muito perigoso.
Ora Sor Amirr se referia ao pai de Rod com rancor, ora com orgulho. O que na verdade havia entre os dois? E o que havia entre o nobre e Lóriel?
– Onde o senhor conheceu meu pai?
Sor Amirr riu como fosse pego desprevenido.
– Por favor, meu rapaz. Já somos mais do que desconhecidos. Não me trate como sor ou senhor. Está bem?
Rod assentiu.
Sor Amirr continuou.
– Nós nos conhecemos em uma situação pouco condizente. – Ele abriu um sorriso triste, como que mergulhado em duras recordações. – Eu sempre estive ao lado do seu pai. E ele me retribuiu de modo claramente controverso.
– Talvez ele tenha agido assim pelo dever que precisa desempenhar.
Sor Amirr deu uma pisada ressoante num galho seco, o olhar subitamente pensativo. Aquele assunto nitidamente o machucava.
– Seu pai merece respeito, meu jovem, muito respeito. Embora tenha perdido o meu ao longo dos tempos.
A garganta de Rod secou. Sua consciência parecia inquieta agora. Não acredito que meu pai possa ter matado Eldric. Por qual razão ele faria uma crueldade dessa?
– Seu pai serve aos governantes com exagerada presteza – reforçou Sor Amirr. – Manda prender, açoitar, matar… Cumpre com os tratos de um modo especialmente peculiar. Como posso julgá-lo diferente depois do que ele fez a Eldric? Ele pode não demonstrar vulnerabilidades, perfeitamente sei disso, mas ele as tem, e como as tem. Ele amava sua mãe, isso é inegável, e por isso ainda guarda um pouco da minha admiração. Ter arriscado a própria vida e o próprio prestígio por ela foi de fato impressionante. Mas, por causa da arrogância, ele a perdeu.
Rod não conseguiu falar coisa alguma. Realmente ele a amava. E ela a ele. Subiu e desceu um declive em silêncio, como se o mundo estivesse se realinhando. Não se sentia bem.
– Eu, em seu lugar… – disse Sor Amirr ao descer o declive correndo –, pesaria os atos de seu pai antes de completamente absolvê-los. Não o imagino preocupando-se com outra coisa que não com os interesses daqueles para quem serve. – Então encarou Rod com uma sombra solene nos olhos. – Você se sente bem?
Rod assentiu com a cabeça, e Sor Amirr o olhou com mais desconfiança. Logo em seguida, o nobre parou de caminhar e deu outra boa olhada ao redor. Rod preferia já ter encerrado aquela conversa.
– Só quero que saiba que esse meu entendimento em nada muda o nosso trato, meu jovem. Já lhe falei e lhe digo mais uma vez. Não guardo qualquer rancor a seu respeito, nem mesmo por causa de seu pai.
Após concluir, Sor Amirr voltou a caminhar, num ritmo muito mais acelerado agora, e Rod novamente arrumou a alça do saco e levou a mão à sua relíquia. Preferia assim, que terminasse naquele ponto, mas uma ideia ainda atiçava os seus pensamentos. E, embora não quisesse, tinha de aproveitar o momento, não podia permitir que o nobre escapasse facilmente. Então correu, até alcançá-lo.
– Lóriel acha improvável que alguém tenha decapitado Eldric sozinho – disse, controlando o tom da voz. – Como ela pode saber de tantas coisas assim? Isso tem alguma relação com aquela nossa última conversa?
Outra vez Sor Amirr o relanceou com suspeita.
– Tenha cuidado com deduções precipitadas, meu rapaz. – Sor Amirr passou a olhar para os lados e por fim para Rod, a expressão ainda mais séria. – Você já levantou suspeitas no mínimo estranhas de Éveru, e agora isso?
Rod até pensou em se defender, mas por fim suspirou, suportando as palavras na garganta. Não é possível que só eu enxergo aquelas coisas se mexerem!
– Vou lhe contar outro segredo sobre Lóriel – disse de repente Sor Amirr –, mas quero que o guarde consigo. Só lhe contarei, porque creio que isso irá ajudá-lo a compreender bem a minha preocupação.
Rod não conseguiu conter um sorriso ao longo do relato. Ele sempre quis despertar a confiança no pai, mas fora justo em Sor Amirr, o homem que até pouco tempo temia, que conseguiu avivá-la com uma intensidade que podia ter grande valor. Havia aprendido a lidar com o inflamado ego do nobre, embora uma dúvida persistente o incomodasse, por não decifrar as intenções dele por completo. Rod tampouco tinha ideia da razão de ele tê-lo perdoado tão facilmente. Por diversas vezes, Sor Amirr se aproximava de Rod e revelava suposições que não se via o nobre comentando com os demais membros do grupo. Assim como o pai de Rod, era um homem de humor oscilante, mas aos poucos Rod percebia o lado mais flexível dele. Sor Amirr tinha uma mescla de respeito e mágoa com o seu pai, algo muito parecido com o que Rod sentia, e talvez por isso o nobre o achasse uma pessoa de total confiança.
Guarde o que lhe disse como fosse seu bem mais precioso, Rod rememorou a última recomendação de Sor Amirr. E lembre-se: essa missão requer cuidados adicionais e uma dose de imutável sabedoria. Há muitos mistérios que a deixam ameaçadoramente intrigante. Não queira torná-la mais perigosa.
Naquele mesmo dia, assim que o horizonte começou a se avermelhar, Rod se viu tomado por uma estranha ousadia. Desse modo, aproximou-se de Lóriel e segredou:
– Agora sei o que perturba Lorde Éveru. Venha comigo que eu lhe conto o que descobri.
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– Não estamos indo longe demais?
Rodden pareceu fingir não entender o receio de Lóriel. Ela não suportava mais aquele ziguezague maluco pela floresta.
– Um pouco mais adiante, e estaremos mais seguros – disse-lhe Rodden.
Pouco depois, ao alcançar a encosta de um morro acentuado, Rodden parou, e Lóriel foi logo ao ponto.
– O que tem a me contar, Rodden?
Rodden engasgou enquanto torcia a alça do saco com alguma das malditas cabeças. Lóriel devia odiar aquele garoto, mas a ingenuidade dele era cativante e, às vezes, atraente. Amirr inclusive a advertira rudemente para não alimentar qualquer interesse, e Lóriel enxergou certo ciúme na advertência, afinal, Rodden era o único dali incapaz de ameaçar as pretensões de Amirr. Muito embora, assim como o pai de Lóriel, o pai de Rodden tinha vivido em meio aos conhecimentos místicos de Profecia e podia muito bem ter ensinado o filho a ser tão manipulador como um mago dos velhos tempos. Afasta-se de Rodden, advertiu-lhe Amirr, do contrário terá motivos de sobra para querer desaparecer pelo mundo.
– O que tem em seu pescoço que tanto a incomoda? – Rodden a questionou subitamente. – Você parece pálida, Lóriel.
Só então Lóriel percebeu que esfregava a veste sobre o amuleto. Baixou os braços já retrucando:
– Isso é tudo que queria me dizer?
– Não, não… É que… eu descobri quem está por trás da morte de Malgro.
Lóriel deu uma exalada. Que garoto mais estúpido! Quem havia decapitado aquele infeliz ela sabia. O que não sabia era quem era aquele infeliz? O que não sabia é por que Amirr vinha agindo de modo estranho com ela. Por que ele não a procurava? Lóriel nunca devia ter aceitado aquela missão.
– Por que você mudou, Lóriel? – quis saber Rodden. – Você mal fala comigo. Está sempre aos sussurros com Sor Amirr, como se tivesse algum segredo ou um envolvimento com ele. Por que está fugindo de mim? Você e ele estão…
Rod não completou a fala, mas Lóriel balançou a cabeça com veemência, sem saber o que falar. Como Lóriel tinha vontade de trazer a verdade à tona.
– Não tenho nada com Amirr. – Suas mãos tremiam para responder. – Ou melhor, com Lorde Amirr. – Rodden era um esfíngico, pensou ela, não podia deixá-lo perceber o seu nervosismo. – E não estou fugindo de ninguém. Era isso que você queria me contar?
– Não confia mais em mim, é isso? – insistiu Rodden.
Mais uma vez Lóriel negou com a cabeça, mas dessa vez não conseguia encontrar uma resposta apropriada. Isso já foi longe demais.
– Deixe-me em paz, Rodden. – Lóriel ia se virando quando Rodden a segurou pelo braço e a puxou com força. Seu corpo então se juntou ao dele, os olhares de repente roçando-se um ao outro. Algo em Rodden a atraía. Talvez pelo atrevimento; inesperado, bem-vindo. Lóriel não conseguia evitar. Ou será que não queria? Nem ela mais sabia o que queria. Quando deu por si, a boca de Rodden já pressionava a sua, os braços dele agarrando-a com vontade.
Lóriel não podia, mas abriu a boca e permitiu que a língua de Rodden deslizasse para dentro de si, resvalando-se na sua, o corpo dele apertando o seu. Num primeiro momento, ela tentou empurrá-lo, de leve, mas uma das mãos de Rodden segurou-a firmemente pela cintura, enquanto a outra corria pelo seu cabelo. Lóriel adorava carícias no cabelo, e aquela mão carinhosa a fazia se recordar que ela tinha um passado onde nem tudo era ruim. Eu posso ser muito mais do que eu me tornei. Eu posso ser livre. Depois de um tempo, Lóriel empurrou-o mais uma vez, um pouco mais forte, mas Rodden a agarrou com mais força, com mais vontade. Ele cheirava ao adocicado da floresta, a suor, a desejo, mas era delicado, e suave, mesmo pressionando-a contra o corpo dele. Não era rude como Amirr sempre fora, e, sim, cheio de emoções carinhosas. Lóriel conseguia sentir muito mais coisas ao mesmo tempo. Ela não podia, mas gostava de como Rodden a tocava. Trazia-lhe lembranças que a permitiam se libertar. Na terceira vez que o empurrou, Lóriel imprimiu toda a força, enfim se desprendendo. Deu-lhe então um tapa no rosto.
– O que você pensa que está fazendo?
– Não precisa mais fingir para mim, Lóriel – rebateu Rodden, massageando a vermelhidão no rosto. – Sei que você não é um deles.
Um aperto repentino estremeceu Lóriel.
– Do que você está falando, Rodden? – Ela balançou a cabeça sem saber exatamente o que pensar.
– E isso não é tudo que conheço a seu respeito – acrescentou Rodden. – Não precisa fugir de mim.
Parecia haver um nó na cabeça de Lóriel. De onde vinha toda aquela petulância de Rodden? Como ele podia ter mudado tão rapidamente?
Rodden então deu um passo em sua direção, e Lóriel encheu a mão com o cabo de sua adaga. Ainda sentia o calor da boca dele na sua. Que mais aquele garoto sabia?
– Não se mexa, Lóriel – Rodden disse, mas Lóriel o ignorou, preferindo mudar a estratégia. Forçando um sorriso, concentrou-se no beijo de ambos e moveu a mão livre num gesto lento, bem cauteloso, como se o chamasse para perto de si. Mas Rodden não parecia instigado pelo seu encanto. Além do cansaço, a recente lembrança trazia a Lóriel uma sensação boa e não manipuladora como precisava. Com os olhos arregalados, Rodden não se aproximava como seu feitiço lhe ordenava.
Então Lóriel ouviu um barulho.
– Lóriel, não se mexa! – Rodden a advertiu mais uma vez.
Lóriel girou a cabeça de um lado para o outro, a mão ainda sobre a adaga. Talvez fosse o vento perturbando as árvores ou Rodden fazendo uso de um dos artifícios de Lóriel para desviar assuntos. Afinal, do que aquele garoto era capaz?
– Como você soube de mim e Amirr, Rodden? Foi ele que lhe contou?
Mas Rodden não dizia nada. Agora os olhos dele estavam tão arregalados que pareciam completamente consternados.
– Deixe-me em paz, Rodden. – Lóriel não conseguia nem mais refletir sobre o que falar. – Você não tem ideia de quem eu sou.
Repentinamente, um pássaro alçou voo grasnando.
Lóriel se virou. Em seguida recuou.
Nesse instante, uma sombra humanoide emergiu da floresta.
Não pode ser!
A princípio, seu sangue gelou, com Lóriel temendo que fosse Amirr, mas, assim que a criatura humanoide de par de chifres retorcidos estacou ao lado de um grande carvalho, seu temor piorou. Era um draconiano, um maldito draconiano. A deduzir pelo saiote preto e a estatura franzina, não passava de um caçador. Contudo, de frágil, aquela criatura maligna não tinha nada.
– Lóriel, não se mexa – Rodden tornou a preveni-la.
O draconiano começou a rosnar.
Lóriel deu outro passo para trás, andando de lado, apertando o cabo da adaga com mais força. Não sabia se devia fugir ou enfrentá-los. Quem afinal era mais ameaçador: o draconiano ou aquele garoto petulante?
– Que mais você sabe sobre mim, Rodden? Foi Amirr que lhe contou?
– Que? – replicou Rodden. – Temos um problema maior a tratar agora, Lóriel.
Não há nada maior a tratar do que isso.
– Não sou quem você pensa. – Olhou então nos olhos de Rodden, mas desistiu da fala ao captar um vulto pairando no céu. Ao menos agora tinha um plano melhor do que tentar enfeitiçá-lo. – Vou provar pra você quem eu sou.
Lóriel disparou.
Instantes depois, ela serpenteava a floresta, desviando dos obstáculos, correndo o mais rápido que suas pernas permitiam. Lóriel temia não se deslocar mais depressa que o draconiano em seu encalço, mas seus pensamentos se mantinham rígidos, e, a cada subida e descida dos morros, Lóriel dobrava em direções sinuosas, na esperança de manter o perigo distante de si. Precisava se livrar da ameaça que aquele garoto havia se tornado, custe o que custasse. Como iria se explicar para o seu pai dessa vez?
Sem parar, saltou por cima de um tronco caído, e subiu em disparada morro acima, e o desceu, meio correndo, meio escorregando, até se reequilibrar sobre os pés novamente. Então, entranhou-se num labirinto de árvores secas, ziguezagueando em curvas fechadas, na esperança de confundir os perseguidores. Sentia-se cada vez mais cansada daquilo. Ao divisar um enorme rochedo, lançou uma olhadela ligeira sobre os ombros.
Apenas o draconiano a perseguia. Mas que coisa!
Fugir passava pela ideia de Lóriel, mas nem de longe ela imaginava que fosse aquele garoto a arruinar suas pretensões. A cada dia, os rumos declinavam numa direção cada vez mais perigosa, e, enquanto disparava para o rochedo, Lóriel desejou saber até quando conseguiria lidar com tantas ameaças ao mesmo tempo. Desesperava-se em pensar na razão pela qual Rodden a havia abandonado com o draconiano e nas coisas que ele tinha descoberto. Será que Amirr tinha parte naquela emboscada? Naquele instante, porém, não podia pensar bem a respeito. Ao alcançar o rochedo, foi logo escalando.
Sua mão, então, agarrou firmemente o cume, e Lóriel encaixou um pé na depressão, mas quando alçou o corpo para cima, o cansaço pesou, e seu pé deslizou em falso, e seu corpo escorreu pela pedra áspera, e uma furiosa ardência avivou-se na pele. Lóriel grunhiu, mas mesmo assim esticou as mãos e afundou as unhas na superfície do rochedo, tentando escalá-lo a toda pressa.
Dedos severos agarraram-na pelo cabelo, puxando-os com força, e, em desespero, Lóriel gritou e contorceu o corpo. Um rosnado veio-lhe em resposta, e outro grito, agora de pânico, escapou de sua garganta, e Lóriel se debateu, atirando-se em cima do draconiano.
Caíram, rolando pela folhagem no chão, e Lóriel cravou as unhas na cara da criatura, arrancando densas tiras de sangue. O draconiano berrou e depois se agitou, retorcendo-se de um lado para outro, até conseguir retirar Lóriel de cima de si.
Lóriel rolou para o lado, levantando-se num pulo.
A criatura fez uma careta com um aspecto homicida.
Lóriel agarrou a adaga, mas antes de puxá-la o draconiano avançou sobre ela, empurrando-a com força contra o rochedo.
Sua cabeça então ricocheteou na rocha, e por um instante de terror uma sensação latejante dominou-lhe os sentidos. Mesmo atordoada, Lóriel afundou os dedos nos braços da criatura, segurando-os, esforçando-se nos limites de suas forças. Um odor azedo enfestou suas narinas, os dentes afiados da criatura aproximando-se do seu pescoço. A essa altura, os braços do draconiano ameaçavam escapar de suas mãos. Lóriel se debateu, mas o draconiano a chacoalhou com tamanha força que sua cabeça atingiu a rocha novamente, com o ar escapando-lhe dos pulmões de uma vez.
O desespero de Lóriel aumentou quando sua adaga escorregou para a folhagem no chão.
O perfume azedo do draconiano beirou-lhe a bochecha em seguida, os dentes da criatura agora a polegadas de seu amuleto. Lóriel imprimiu mais força nas mãos, mas não conseguia afastá-lo. De repente não via alternativa. Então, antes que pudesse se arrepender, projetou a boca, cravando os dentes na bochecha da criatura, apertando-a com ódio, mordendo com toda a raiva.
O draconiano deu um berro, mesmo assim Lóriel continuou a pressionar cada vez mais forte. Em breve, a carne do draconiano rompia-se sob os dentes, e um sabor gelado começou a invadir sua boca. A lembrança da mordida em Attad logo veio-lhe à mente, e Lóriel sentiu ainda mais raiva do que fazia. Pressionou ainda mais, e, quando o draconiano se jogou para trás, um tufo de carne rasgou-se entre seus dentes. Cuspindo, Lóriel se livrou do pedaço e virou-se às pressas para retomar a escalada do rochedo. Dessa vez não escorregou.
Alcançando o cume, correu até a beirada, na outra extremidade, esfregando as costas da mão na boca. O sangue frio do draconiano impregnava-lhe os lábios. Chegando à beira, deu uma boa olhada adiante e tentou reaver um pouco do fôlego.
Foi então que o draconiano tornou a rosnar.
Lóriel se virou e retornou para enfrentá-lo.
– Fuja, Lóriel – ouviu Rodden dizer. – Fuja!
Para a sua sorte, agora era o garoto petulante que se esquivava do draconiano. E embora a ameaça de Rodden fosse efervescente, o draconiano também era perigoso. Bem que os dois podiam se matar na briga, pensou ela dali de cima, afinal, escapar, naquelas condições, não era uma ideia a se deixar de lado.
– O que você quer de mim, garoto?
– Eu não sou um garoto. – Rodden retrucou, enquanto continha os braços assassinos do draconiano. – Fuja!
Em meio à luta ferrenha dos inimigos, Lóriel procurou pela adaga, mas a folhagem era densa demais, e o cansaço já a dominava. Não estava certa em qual região tinha caído. Vislumbrou, porém, uma pedra, caída, logo abaixo.
Lóriel deu então outra olhada rápida para o duelo. Precisava agir depressa.
Em seguida, escorregou do rochedo e apanhou a pedra, pressionando-a até sentir uma aspereza. A vida daqueles que se importavam com ela dependia de Lóriel, e ela não podia falhar. Com um movimento hesitante, ergueu o braço, posicionando-o logo atrás da cabeça.
– Fuja, Lóriel – ouviu Rodden repetir. – Fuja!
Lóriel não fugiu.
Em vez disso, atirou a pedra.
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A nuca de Rod tinia quando ele se recobrou.
Bem devagar, levantou-se e bateu a folhagem do corpo, sentindo-se ligeiramente atordoado. Depois, apanhou do chão a espada e o maldito saco de pano que carregava. Onde aquela cabeça foi parar? Guardou a espada na bainha e tateou o bolso que abrigava as relíquias. Olhou-se então outra vez. Nada era nítido àquela altura.
Uma linha vermelha havia se desenhado no gibão, sobre o peito.
Rod levou a mão à lateral da testa. Que merda!
Girando sobre os calcanhares, avistou um corpo no chão, distante uns dez passos.
Nada de Lóriel.
– Lóriel?
Rod ficou um momento parado, esperando alguma resposta. Que grande bobagem havia feito. Pouco depois, ateve-se ao corpo. Meio oculto pelas sombras das árvores, ele se encolhia como uma criança com frio, a cabeça sobre uma enorme mancha de sangue. Deitado daquele jeito, parecia ainda menor do que antes. Com cuidado, Rod chegou perto e se abaixou.
Os pés eram parecidos com os dos humanos, não fossem os dedos pontudos que saltavam das sandálias. As pernas não tinham qualquer pelagem ou proteção, mas eram fortes como de um guerreiro, com músculos acostumados com longas distâncias. Embora o braço escondesse o rosto, o tronco estava parcialmente visível, com uma grossa veste de pele o protegendo. O cabelo escuro não era longo, e as costas tinham um aspecto macio e moreno. Na frente, uma saliência firme lembrava seios de uma mulher, e o saiote preto dava-lhe uma assustadora fisionomia de batalha. Estaria Rod diante de uma guerreira draconiana?
Quando esticou a mão para tocá-la, a guerreira grunhiu como que ameaçada.
Rod recuou, já se erguendo, deixando o saco cair.
Uma rajada de vento em seguida o acertou. Rod olhou para o céu, avistando um vulto entre as árvores. Que raios era aquilo?
Rod girou e chamou por Lóriel outra vez. Nesse instante, uma sombra disparou pela floresta. De imediato Rod olhou na direção da guerreira.
Apenas a mancha de sangue continuava ali.
Será que essa criatura estava atrás de Lóriel?
Analisando o ambiente ao redor, levou um susto com a cabeça de Malgro. Rapidamente, pegou novamente o saco de pano do chão, sentindo como se a morte o observasse de perto. Após apanhar a cabeça, jogou-a para dentro do saco e gritou de novo por Lóriel. Apesar de sua estupidez, não conseguia entender por que ela tinha fugido daquele jeito. Ela e Sor Amirr estão juntos. É mais que óbvio.
Já sem esperanças, recebeu uma vaga resposta.
– Aqui em baixo.
Rod deu um giro rápido, voltando-se para o rochedo. Parecia muito mais um paredão de pedra do que um rochedo, tão comprido que era. Depois de amarrar o saco com a cabeça de Malgro em si, foi até o rochedo e começou a escalá-lo.
Durante a subida, seu corpo pesou, como se carregasse toras de ferro em vez de uma cabeça nas costas. Uma pedrada havia-lhe atingido a testa pouco antes de Rod acertar um golpe na guerreira draconiana, mas era a nuca que mais doía. Por que raios Lóriel tinha agido daquele jeito? Por que tinha atirado aquela pedra? Será que queria atingi-lo ou foi por acaso que o acertou? Por que Rod deu aquele beijo nela? O que está acontecendo comigo? Alcançando o topo, impressionou-se com a paisagem rochosa que formava o horizonte e aproximou-se da borda do rochedo, para então recuar às pressas.
– Aqui em baixo – a voz de Lóriel soou um pouco mais intensa. – Desce, vem.
Talvez Rod não tivesse visto bem. É um penhasco?
– Lóriel?
– Aqui em baixo. Desce! Rápido!
Com extremo cuidado, Rod espichou a cabeça e sondou o declive escorregadio que levava à beira do penhasco. O que Lóriel fazia ali? Com a mão, secou o suor do rosto e deu um breve passo à frente. Se estivesse dependurada, por quanto tempo Lóriel aguentaria? O terreno rochoso lembrava uma das trilhas de treinamento. Em sua última competição, um escorregão impulsionou Rod a uma vitória merecida, mas trapaceada sobre Adrienn. Hoje, ele reclinava o corpo para trás, equilibrando-se com todo o esforço sobre os pés que tremiam.
Não posso cair, não posso cair!
Com mais dois passos deslizantes, Rod precisou se deter. Depois de chamar por Lóriel outra vez e obter vaga resposta, murmurou uma prece, embora não acreditasse muito nos deuses de seu pai. Só mais um pouco. Àquela altura, a rigidez na perna contrastava com o agradável aroma do começo da noite. Às vezes, sentia um leve tremor sob os pés. Que tipo de guerreiro tem medo de altura?
– Vem, Rodden. Quero conversar com você.
Quando enfim deslizou para a beira do rochedo, que na verdade era uma gigantesca borda rochosa, agachou-se e apoiou-se ao chão. Diante de seus olhos, um abismo se apresentava como uma vastidão escura e insondável, cercado por formações de pedra que criavam camadas impressionantes nas paredes laterais. Daquela perspectiva, com os pés à beira do precipício, intensificavam a sensação de vertigem e pequenez humana diante de uma imensidão tão sombria e perigosa. Seus sentidos àquela altura estavam trêmulos, e até as pernas pareciam lutar contra a sua vontade. Rod nunca havia ficado tão próximo da boca de um abismo como aquele. Apertando a alça no ombro, levantou-se devagar e espichou a cabeça.
De repente, uma palma rude cobriu-lhe a boca.
– Não faça barulho, garoto – segredou-lhe Lorde Éveru.
Rod não se atreveu a contestar. Virou-se lentamente para o outro homem.
Lorde Éveru então estudou o seu rosto ao afastar a mão. Em seguida, ele pressionou o ferimento na testa de Rod, que, com um tapa, removeu a mão do outro de si, mas essa atitude o desequilibrou, com o seu corpo pendendo para o penhasco.
Lorde Éveru segurou-o fortemente pelo braço, deitando um olhar incisivo sobre Rod. Depois disso, recuou e avaliou os dedos empapados com o sangue de Rod. Sem uma palavra, lambeu-os, como provasse um doce, e fez um gesto que Rod deduziu que era para segui-lo. Então, saltou da formação.
Rod não soube o que pensar. Ainda assustado, deu uma olhadela relutante para dentro do penhasco. Por que Lorde Éveru tinha provado de seu sangue? Que tipo de lorde ele era afinal de contas?
– Vem! – ouviu Lóriel segredar outra vez. – Desce.
A garganta de Rod se contraiu, e ele olhou ao redor. Será que Lorde Éveru também tinha escutado? Rod desejava mais do que nunca regressar a um lugar seguro, mas o conselho de Sor Amirr para investir sobre Lóriel e a lembrança do beijo povoavam-lhe a mente muito mais do que devia.
Eu nunca devia ter feito aquilo.
Embora estivesse em dúvida, esticou a cabeça novamente.
Agora viu enormes árvores nas encostas, rochas talhadas, degraus naturais de pedra, entradas obscuras que pareciam de cavernas, tudo muito distante no amplo círculo que se abria com o abismo. Havia até um tipo de escada do outro lado de onde estava, mas nada de Lóriel.
Amarrando melhor o saco com a cabeça de Malgro, deixou-o bem rente ao corpo. Um penhasco por si só já seria capaz de fazer Rod se afastar a toda pressa dali, quanto mais um penhasco com uma beira íngreme e repleta de elevações como aquela. Talvez devesse solicitar ajuda. Ou talvez devesse deixá-la em paz.
– Rápido, Rod, venha.
Rod… O mundo pareceu parar naquele instante. Lóriel enfim o chamava de Rod, e nunca o seu nome havia soado tão fascinante como daquela vez. Finalmente a herdeira de Resplendorr o chamava de Rod. O beijo certamente tivera um especial significado para ambos. Sor Amirr estava certo.
Sentando-se, Rod se virou de bruços e acomodou o peito sobre o chão. Com o coração aos pulos, baixou as pernas sobre o vão e, mesmo sem enxergar Lóriel, começou a deslizar.
No instante seguinte, um sopro gelado, com um som estranho, ergueu-se das profundezas do abismo.
Rod tentou içar-se de volta, mas deu por si escorregando, pendendo perigosamente de lado. Quando avistou Lóriel sobre um patamar logo abaixo, sua espada desprendeu da bainha, e o mundo correu depressa de ponta cabeça. Mesmo tragado pelo abismo, conseguiu agarrar-se à beira do patamar no qual Lóriel se achava.
Então, outro sopro tocou-lhe as costas.
O som se tornou mais forte e aterrorizante.
Rod não podia ver, mas sentia um vulto batendo asas atrás de si. Em desespero, estendeu a mão para Lóriel.
Mas ela não se moveu.
Garras, então, fecharam-se com força em seu peito, e de repente Rod voava para o alto.
Pouco depois, caía em queda livre.
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Um aperto no coração teimava em assombrar Attad naquela noite. Durante o tempo em que conferia os mantimentos na bolsa de viagem, o uivo pesado da indumentária duelava com as vozes enfurecidas em sua mente, e cada vez mais ele se via cercado de dúvidas e temores.
– O senhor não quis comer – disse-lhe Dáfini, pousando as mãos em seu ombro.
– Não tenho fome.
– Por que não descansa, pelo menos até o nascer do dia? Sair por essa floresta assim, na calada da noite… Não parece o mais sensato a fazer, sabe? Conseguiu ao menos se decidir para onde irá?
Attad massageou a barba e virou-se para a fogueira que ardia solitária no vilarejo. Até quando podia esperar por ajuda? Precisava alcançar Rodden, a qualquer custo, por isso tinha de traçar outro plano com urgência. A fim de evitar a proposta daquele maldito demônio, e, óbvio, por suas próprias preocupações e desconfianças, tinha de achar o filho e juntar-se o quanto antes ao exército que marchava para Resplendorr. O destino de ambos era distante dali e repleto de seus próprios perigos. O pior de tudo era que falhar com o filho significava muito mais que perdê-lo para as consequências de suas ações e culpas. Significava perder a última memória viva de Endy, a última memória de seu amor. No entanto, sem ninguém confiável para auxiliá-lo, Attad perguntava a si mesmo qual esperança ainda podia ter em resgatar o filho com vida ou a tempo de seu encontro com os Deuses.
– Como pude não enxergar o que estava acontecendo? – disse Attad a si mesmo.
– O senhor não deve se culpar. – A mão de Dáfini deslizou sorrateiramente pelo braço de Attad e apanhou dele a bolsa com os mantimentos de viagem. – Por que não tenta uma audiência com o Governador antes de qualquer coisa?
A tensão repuxou os lábios de Attad. Regressar à Fortaleza Montanhosa soava quase tão inoportuno como surpreendente. Apesar disso, depois das recentes descobertas, que mais poderia surpreendê-lo?
Não era isso que Endy esperava de mim.
Mais cedo, naquele mesmo dia, Attad não conseguia compreender o nervosismo de Layla. Durante o tempo em que Dáfini o guiava para uma casa na rua principal do vilarejo, chorando aos soluços, Layla tentava explicar acerca dos eventos que levaram Rodden e ela até ali, como se uma grande tragédia estivesse em curso.
Ao entrar na casa, no entanto, Attad começou a entender.
Um odor de mofo misturado ao de ervas e suor impregnava o ambiente, e sobre uma cama improvisada de palha dura, Amirr desfalecia, com um horrível ferimento que descia do ombro ao estômago. Ao lado dele, Malgro o velava como um carrasco receoso em executar um condenado. Encontrar Malgro deixou Attad momentaneamente feliz, mas também o encheu de suspeitas. Jogados no canto, uma dupla conhecida encontrava-se amarrada pelas mãos, um ao outro, os rostos gravemente feridos.
– São esses os tais malfeitores? – havia perguntado Attad.
Layla assentira com um único meneio de cabeça. O mais magro chamava-se Syann. O forte e alto, Rhoann. Attad há tempos desejava capturá-los e mais do que nunca ansiava arrancar deles tudo o que sabiam. Dando outra olhada para Amirr, Attad estreitara os olhos. A mão do nobre, fechada fortemente sobre o peito, tinha uma cintilação esverdeada, muito familiar. Attad não imaginava que um dia iria rever aquilo. Ainda assim, virou-se e voou na goela de Rhoann.
– Agora me explicará o que queriam com o meu filho, verme maldito…
– Deixe-os para depois, meu senhor. – Dáfini puxara-lhe pelo braço. – Melhor ouvi-lo, antes que…
Attad ainda esperava Dáfini completar a fala quando compreendeu que ela não continuaria. Hesitante, retirou a força das mãos e distanciou-se do marmanjo que rapidamente se encolheu no canto feito um animal assustado. Depois disso, Attad se arrastou até o leito onde Amirr agonizava. Mal teve coragem de encará-lo.
– Que destino o nosso – falara Amirr, a voz torpe, malcheirosa. – Até na hora de eu encontrar um pouco de paz, as forças maiores o põem em meu caminho.
Attad de novo precisara umedecer a garganta ao dirigir o olhar para Malgro. O Lorde Furiano fez uma expressão de pesar, escarrou no chão e se dirigiu até os malfeitores. Agarrando-os pelo colarinho, arrastou-os para fora da casa.
Attad então se vira forçado a encarar Amirr.
– Não pense que lhe pedirei desculpas, Attad – dissera Amirr, com uma risadinha. Nem de longe lembrava o lorde viril de outrora.
– Não espero nada vindo de você, Amirr.
Amirr tossira. Recordar-se daquele som carregado dava-lhe pavor.
– Se alguém aqui deve desculpas, este é você, Attad.
Attad abrira a boca, mas, teve de engolir em seco. Anos haviam se passado desde a desavença dos dois, e mesmo assim a rivalidade e o remorso pareciam tão vivos que, ainda hoje, Attad perguntava a si mesmo se em algum dia eles conseguiriam enterrar aquela desavença de vez.
– Senta aqui, Grão-Senhor. – Amirr batera com a mão na beirada da cama. – Precisamos conversar.
Attad olhara para Dáfini. Ela em seguida baixou a cabeça e também se retirou da casa com Layla.
Amirr então recomeçou a tossir, e Attad ficou um tempo imóvel. Ao dar uma boa olhada na cintilação verde na mão do outro homem, aproximou-se dele. Os braços àquela altura pesavam diante da palidez de Amirr. Os pensamentos continuavam a pairar nos infelizes que Malgro arrastara para fora, no entanto, naquele momento, Attad começava a temer pelo destino que espreitava Amirr.
– Não me chame mais de Grão-Senhor, Amirr.
– Alguém assumiu meu lugar, Attad.
– Éveru por certo se encarregará do seu posto agora. Não se preocupe.
– Não é disso que me refiro. Um farsante se passa por mim.
Então Attad passou a acompanhar o longo relato de Amirr. Algum tempo após o Concílio, Amirr e Malgro tinham se hospedado num vilarejo, no sul de Essência. Dias mais tarde, eles acordaram amarrados, num tipo de ritual que imaginaram pertencer aos Herdeiros das Sombras. Os dois conseguiram fugir, mas descobriram que havia outros homens, de aparência idêntica às suas, em seus lugares. Assim, a fim de descobrir o que os farsantes pretendiam, Amirr e Malgro tinham passado a segui-los em total sigilo.
– Era um farsante que acompanhava Évelyn na audiência com Dáriuss?!
– Ele enganou vocês todos – insinuara Amirr. – Não sei o intuito. Sei que foi uma grande encenação. E um feitiço formidável também.
– E o que trouxe os farsantes a esse lugar?
– Aqueles dois que Malgro arrastou daqui. – Amirr inflara o peito e grunhira. Sua dor parecia palpável naquele instante. – O farsante que se passa por mim os perseguiu, após salvar o seu filho. Aquele seu filho com Endy.
Attad agarrara-se ao lenço. Até agora desejava entender por que um farsante salvaria Rodden e por que diabos o tinha envolvido naquela trama.
Após um longo arquejo, Amirr começou a se debater. A princípio Attad se distanciou e olhou para os lados. Sem ideia melhor, retornou e embrulhou a mão do rival nas suas.
– Tente ficar calmo, Amirr. – Attad se aproximou um pouco mais e tocou na testa do outro homem. Ela estava fria, mas esse gesto aos poucos o acalmou. – Está mesmo certo que quer enfrentar essa dor, Amirr? A morte pode ser muito dolorosa para alguém como nós.
Amirr sorrira.
– Muitos já sabem de nós, Attad. Somos alvos vulneráveis agora. Eu sei bem o que planeja. Não vá para Profecia. Não busque os Deuses. Lute contra eles e nos liberte deste pesadelo. Não quero mais sofrimentos. Quero paz. Perdão. Quero o seu perdão, meu Grão-Senhor. – Um sorriso iluminara-se no rosto de Amirr. Não de gracejo como Attad detestava, mas, um outro, de aspecto amargo, marcante. – O tempo não me fez bom o bastante para vencer os meus desejos, Attad. Assim como não me fez bom o bastante para vencê-lo. Você tem todos os motivos para me odiar, mas jure deixar-me repousar em paz. É a última coisa que lhe peço.
– Sabe que não posso permitir isso. Nosso código, Amirr…
– Sempre o código, Attad? O Necronómicon pode ser a resposta para essa maldição que nos governa. As joias… Eldric e Lúciann descobriram algo muito valioso sobre elas. Elas e o punhal que importam. Liberte-nos dessa maldição. Ainda que eu não mereça, por favor, me liberte. Eu lhe imploro! Não me traga de volta. Eu só quero morrer. E eu mereço morrer por suas mãos.
Pouco depois de relatar os demais fatos que o conduziram àquele vilarejo e tudo o que havia conspirado ao longo de anos contra Attad, Amirr dera um longo e profundo suspiro. Sua boca então se fechou, como se o toque de uma força superior o tranquilizasse. Seus olhos endureceram e pouco a pouco foram perdendo o brilho, até se tornarem totalmente foscos. A mão que cintilava sobre o peito relaxara-se. Mesmo assim, ele continuava a arquejar.
Com raiva, Attad abrira a mão de Amirr, refletindo sobre as palavras de seu desafeto. A morte de fato era pouco para aquele verme maldito. Em seguida, sob um olhar de agonia e protesto, Attad sacou o punhal.
O corpo de Amirr endurecera feito pedra.
Aos Deuses e só aos Deuses, eis um súdito que se humilha por uma vida nova…
A cabeça de Dáfini pesando em suas costas arrancou-o daquele devaneio.
– Sinto muito pelo seu amigo.
Attad balançou a cabeça e em seguida deu uma boa olhada para Dáfini. Depois, tornou a vislumbrar a fogueira numa luta gigantesca para conter as emoções. Sabia que ela se referia a Amirr, mas Attad preferia não ressuscitar mais o assunto. Precisava ir embora daquele vilarejo e focar no que faria dali por diante. Não podia mais se doer pela traição dos vermes que se diziam aliados. Eles ainda iriam encontrar o que mereciam. Mas para onde devia seguir, Attad não tinha a menor ideia.
– Aquele cretino não era meu amigo – disse, ao se virar e arrancar a bolsa de mantimentos da mão de Dáfini. Em seguida, voltou-se para a floresta, para a escuridão que os cercava. – Ele era um antigo aliado. Ao menos pensava assim. O noivo de Endy.
– Noivo?! – Dáfini pareceu espantada. – Os senhores duelaram… por ela?
Attad sorriu. Não devia, mas sentia uma pontada de orgulho em si.
– Não foi preciso. – Então ergueu os olhos para as estrelas e tragou o ar gélido da noite. Novamente o passado e o presente travavam um duelo em sua mente, reavivando demônios adormecidos que jamais deveriam ser despertados. – Eu e Amirr tivemos um encontro inusitado na torre dos aposentos de Endy. Dias mais tarde, ele… declinou do casamento. – Voltando-se para Dáfini, encarou-a nos olhos. – Eu tomei Endy dele.
Dáfini pareceu ainda mais espantada, e, ante o silêncio da mulher, Attad se sentiu tanto orgulhoso quanto grato por poder encerrar aquela questão. Já se sentia perturbado o bastante para um único dia.
– O senhor ainda a ama, não é?
Aquela pergunta não veio num bom momento. Attad se remoía por tudo que Amirr lhe havia revelado. Mas não deixou de apreciar a ousadia.
– Por que não me conta logo o que aconteceu com vocês duas? Qualquer coisa que disser sobre Endy me basta para eu seguir viagem com o espírito um pouco mais ameno. Endy lhe contou alguma coisa diferente, algo sobre mim ou para mim? Ela me deixou alguma coisa?
Dáfini mordiscou o lábio. Era uma mulher muito atraente, com uma energia única, que avivava desejos que Attad mal recordava que existiam. Por outro lado, a sombra de mistério por trás dos olhos daquela mulher era perturbadora. Por que ela tinha preferido se fazer de morta em vez de retornar para a Fortaleza Montanhosa? O que havia de especial nela que o Necromante tanto almejava?
Nesse instante, Layla surgiu, gesticulando em total alarme.
– Há cavaleiros vindo em nossa direção.
– Cavaleiros? – surpreendeu-se Attad. – Quantos?
– Não sei. Eles se aproximam pelo outro lado. Lorde Malgro foi recebê-los.
Attad tornou a encarar Dáfini. A julgar pelo modo que ela lhe devolveu o olhar, entendera o gesto como advertência muda de que aquela conversa não tinha acabado.
– Apaguem a fogueira e se escondam com os demais. – Attad determinou e já foi se afastando depressa em direção à rua principal.
Dáfini então o chamou.
Attad parou e aguardou que ela terminasse a corrida ao seu encontro. Ao alcançá-lo, Dáfini reduziu a passada, quase parando. Depois, jogou os braços ao redor de seu pescoço e o envolveu num abraço tão quente e macio que Attad chegou a pensar se tratar de um sonho.
– Tenha cuidado.
Attad demorou, mas, por fim, retribuiu o abraço. Seus olhos queimavam de uma dor profunda, um tanto cruel, mas mesmo assim ele se segurou para não sucumbir às emoções. Apenas abraçou aquela bela mulher com mais força, sentindo-a, tocando-a, saboreando-se de sua fragrância doce. Quando se afastaram, seus olhares continuaram a se tocar por um momento, e Attad fechou firmemente a mão em seu lenço. Que diabos havia naquela mulher? Logo depois, disparou para a rua principal.
Chegando lá, deparou-se com Malgro. Com uma tocha na mão, o Lorde Furiano ostentava um semblante amarrado, ao passo que o ressoar oco da cavalgada crescia com a aproximação dos cavaleiros.
– Ainda com aquela história de renúncia? – provocou-lhe Malgro. – Saiba que serei o primeiro a reclamar sua cabeça.
Attad olhou-o longamente.
Malgro continuou com uma expressão mal-humorada.
– São apenas dois e um cão – emendou ele. – Dou conta deles sozinho.
– É Lokke quem vem lá, Malgro. Não sei se daria conta dele.
Após um instante de silêncio, os dois riram, mas Attad não compartilhava da mesma alegria de Malgro. Pescando um fruto-de-mago do bolso, atirou-o na boca, despertando um sabor suave na garganta, pouco antes da chegada dos cavaleiros. E, assim que os homens puxaram as rédeas, uma mescla de alívio e temor insurgiu-se como um rebelde dentro de si. Que raios Lokke e seu cão faziam ao lado do Conselheiro-Mestre Elmon? Por outro lado, sentia-se grato por ver Lokke bem e a salvo. Devia ter sido uma jornada de sacrifícios a dele, e pelo menos agora Attad se via livre da culpa de tê-lo enviado a uma missão de grande perigo. A esperança também regressara com ele. No entanto, só podia haver um motivo que fizesse o Conselheiro-Mestre abandonar o calor da Fortaleza Montanhosa.
– Se vieram para me conduzir de volta, melhor que retornem.
Elmon e Lokke entreolharam-se. O cachorro começou a rosnar.
– Nunca me daria o trabalho de conduzi-lo a lugar algum, Grão-General – rebateu o Conselheiro-Mestre ao desmontar. – Os sábios bem sabem disso.
– Então por que veio?
– O Governador, Attad – disse Lokke, ainda de sua montaria. – Ele está morto.
– Dáriuss… morreu?!
– Foi assassinado – guinchou o Conselheiro-Mestre, ao ajeitar a indumentária. – Num golpe bárbaro e covarde de Kregg. E não é Cáciuss que governa Soberannia. Ele desapareceu pouco antes do ocorrido. É a Regente Évelyn que se senta em nosso trono. Soberannia requisita o seu Senhor Grão-General para cuidar deste assunto.
Foi a vez de Attad e Malgro se entreolharem.
– E no primeiro ato como Regente de Soberannia, Évelyn foi além do que pode imaginar, Attad. – Lokke desceu da montaria e massageou o dorso do cão, fazendo-o parar com o rosnado. A dor por ter machucado o cão de seu amigo de repente atacou Attad. – Ela reestabeleceu a Grande Festa de Paz e pôs a sua cabeça a prêmio, meu velho amigo.
– Minha cabeça já estava a prêmio, Lokke.
– Mas agora há um agrupamento à sua caça, Senhor Grão-General – advertiu Elmon. – Estão de tocaia no Corredor da Névoa e amanhã devem avançar com as buscas. Os sábios bem diriam que o Império não descansará enquanto não o encontrar.
Attad refletiu um instante. Depois, dirigiu-se a Lokke:
– Recebeu minha mensagem?
Lokke deu uma olhadela para Malgro, o olhar nitidamente incomodado.
– Estou aqui, não estou?
– Conseguiu? – Attad não se conteve.
– Fiz como queria, mas perdi o contato faz uns dois dias, Attad. Sinto muito.
Attad puxou o ar com força, comprimindo os lábios. Lokke não podia ter trazido notícia pior que aquela.
– Mas descobri um fato interessante – Lokke adicionou. – Eles atravessaram para o Sul.
– Para o Sul?! – De novo Attad olhou para Malgro. Até que ponto Amirr e aqueles dois mercenários cretinos falavam a verdade?
Malgro limpou a garganta e escarrou no chão.
– Tem certeza do que fala, Lokke?
– Minhas fontes não mentem, meu caro, sabe bem disso.
– Foi aquele maldito, Attad – praguejou Malgro. – Ele convenceu Éveru a fazer a travessia pelo Reino dos Nefilins. Eles vão até Riáss.
Eles realmente vão atrás de uma guerra, pensou Attad.
– Os rastros também indicam que eles estão sendo seguidos de perto pelos draconianos – enfatizou Lokke. – Temo que esta missão não chegue a um bom fim, Attad.
Attad então levou a mão à barba, mas demorou a afundar os dedos nela. Temia acreditar no significado de suas desconfianças, especialmente agora que elas eram cada vez mais prováveis. Eles não só querem enfrentar as maldições, como estão dispostos a lutar contra os Deuses. Será que não enxergam a loucura? Mas que diabos Éveru tem a ver com tudo isso? Por outro lado, seus lábios também se repuxavam, e quando deu por si Attad já estava sorrindo. Definitivamente, o mundo jamais seria o mesmo a partir daquele momento, ele sabia. No entanto, a morte de Dáriuss e a infeliz decisão de Éveru, por mais desastrosos que pudessem parecer, faziam crepitar, em meio ao caos de seus pensamentos, uma viva fagulha de esperança.
– Soberannia requer a sua atenção, Grão-General – disse-lhe o Conselheiro-Mestre Elmon. – Estamos enfrentando o pior surto que já vivenciei, e o destino de nosso povo depende de sua decisão. O que o Senhor Grão-General pretende fazer?
Attad fixou o olhar em Elmon por um instante e depois deu-lhe as costas. Ao menos agora sabia exatamente para onde seguir. Rodden ainda estava ao seu alcance.
– Soberannia demanda a sua presteza, Grão-General – Elmon continuou com a ladainha. – O que escolhe dessa vez; o seu filho ou o seu dever?
– Eu escolho descansar, Conselheiro-Mestre. Ao menos até o nascer do dia.